A palavra que começa com “P”
Por Luna do Cairo
Traduzido por Lalitha
Não, não é isso que você está pensando. É uma outra palavra
que começa com P – uma que está me incomodando já há algum tempo. A palavra é
“prestígio”, ou bresteej, como dizem
os egípcios. :) Significa a mesma coisa em árabe egípcio e em inglês (N.T.: em português
também), exceto que os egípcios também a utilizam esse conceito na dança do
ventre. Vou explicar o que quero dizer.
Há alguns dias, eu recebi um convite para dançar num
restaurante depois dos meus shows no Nile Memphis. Eu dançaria ao som de CD,
trocaria de roupa 3 vezes, e ganharia um monte de gorjetas. Eu disse ao meu
agente que eu aceitava o trabalho, e arranjei de um amigo meu do meio da dança
me acompanhar. Entretanto, ao chegarmos no restaurante, descobrimos que lá não
tinha pista de dança. Na verdade, o restaurante era do tamanho da minha
cozinha, e não tinha o menor espaço para dançar. No máximo, eu poderia fazer
pose entre as mesas e marcar algumas batidas da música. Para piorar as coisas,
os clientes eram, em sua maioria, homens bêbados.
Quando ele viu aquilo, meu amigo começou um sermão
desgraçado sobre como trabalhos como aquele não “tinham prestígio”, e como eu
estou me preparando para o fracasso. E ele continuou nessa até que eu não
aguentei mais e comecei a fazer birra na rua. E veja bem, eu deveria estar no
“palco” em 5 minutos.
“Já chega!!! Eu vou pra casa!” gritei, e entrei no primeiro
taxi que passava na porta. Ele tinha me deixado tão zangada que eu não me
importava se estava arruinando os negócios do meu agente ou até mesmo a minha
reputação. Eu só queria ir para casa e ficar longe de todo o mundo.
Sem esperar uma reação tão escandalosa da minha parte, meu
amigo pulou para dentro carro junto comigo. E nós dois começamos a discutir com
o motorista do taxi – eu dizendo para ele me levar para casa, e meu amigo
dizendo para nos levar de volta ao restaurante; ele não queria ser o
responsável por me fazer arruinar a noite. O motorista acabou se deixando levar
pelas ordens do meu amigo ao invés das minhas lágrimas e súplicas para ele me
levar para casa, e nós acabamos novamente em frente ao restaurante. Eu me
recusava a sair do taxi, imagina ainda mais dançar, e fiquei teimosamente
sentada lá dentro até o cantor sair do restaurante e vir me tirar do carro.
Agora eu estava realmente zangada – enfurecida. Eu me
ressentia do fato do motorista de taxi não ter me escutado porque sou mulher.
Eu me ressentia da situação na qual me encontrava, e me ressentia que agora eu
teria que dançar para homens bêbados. Me senti humilhada.
Depois de toda essa confusão, eu consegui me recompor e
balançar em volta das mesas. Eu fiz uma quantia ridiculamente grande de
gorjetas, mas quando terminei, fui ter uma conversa séria com o meu amigo sobre
“prestígio” e porquê não posso dançar em lugares como esses. Bom, de acordo com
a lógica dos egípcios.
Primeiro, ele se desculpou por ter falado comigo de forma
tão dura antes do show e por ter me feito chorar. Então ele recomeçou o sermão
de que agora que sou uma bailarina contratada para dançar no Cairo tem algumas
questões que eu preciso levar em consideração. Tais como, “uma bailarina
contratada de classe” não trabalha em cabarés ou restaurantes tipo taht il-silim, “embaixo da escada”, não importa quão bom seja o cachê. Ela também
não se apresenta ao som de CD em resorts do Mar Vermelho a 2 ou 3 horas do
Cairo – ela será considerada amadora pelos egípcios da indústria do
entretenimento. A bailarina contratada precisa dar a impressão de que ela é boa
demais para esses tipos de trabalho. Ela precisa ter um ar arrogante e andar
com o nariz empinado. Por quê? Porque no Egito, essa é a única forma dela ser
respeitada. Humildade não te leva a lugar algum. E porque assim que se fizer um
burburinho de que tal bailarina dança ao som de CD ou em lugares baratos, ela
nunca será chamada para dançar com a sua banda nos lugares de maior
“prestígio”, como os hotéis e barcos 5 estrelas, não importa o quão talentosa
ela pense que é.
Eu ainda estou muito zangada com o meu amigo, mas sei que no
fundo ele tem razão. Pelo menos na forma egípcia de ver a coisa. E é verdade,
que não era a primeira vez que eu ouvia essas coisas. Inúmeros egípcios que
trabalham no meio, incluindo o meu agente e outras bailarinas de alto nível, já
me disseram a mesma coisa. Ainda assim,
alguma coisa nessa noção de “prestígio” na dança do ventre ainda não entrava na
minha cabeça.
E isso é o porquê. Primeiro, em inglês (e no árabe egípcio),
a palavra “prestígio” é normalmente utilizada para médicos, advogados,
políticos e outros profissionais tidos em alta consideração. Parece ridículo
usar esse conceito na dança do ventre, a qual a grande maioria dos egípcios
iguala à prostituição! Nisso se inclui os músicos, os gerentes dos hotéis,
barcos e cabarés, até mesmo algumas bailarinas. Quero dizer, por acaso existe
algo como uma prostituta de prestígio?!? Você pode até discutir comigo nesse
ponto :), mas deixe-me chegar à minha conclusão e dizer não!
Segundo, eu creio firmemente na humildade. Eu nunca me
vangloriei nem nunca vou me vangloriar, muito menos dizer que sou boa demais
para alguma coisa (desde que essa “coisa” seja respeitável). Eu não suporto
pessoas que dizem que são muito boas nisso ou naquilo. Elas estão apenas
massageando os seus próprios egos machucados, ao afirmar que se acham
maravilhosas para se sentirem melhor com os seus próprios fracassos. Então eu
evito esse tipo de linha de pensamento. Eu não sou pretensiosa, não tenho esse
ar arrogante.
Terceiro, eu sou prática. Se fazer alguma coisa me beneficia
sem me prejudicar, eu vou fazê-la. Assim como dançar nesse restaurante
pequenininho ou me apresentar em resorts do Mar Vermelho ao som de CD. No
restaurante eu consigo uma boa quantia de dinheiro sem nem suar. Ninguém me
encosta ou me insulta, e ninguém sabe o meu nome, o que é uma coisa boa (eu não
gostaria de nenhum burburinho de que a Luna dança num restaurantezinho taht il-silm! :D). Nos resorts do Mar Vermelho eu ganho uma miséria, me derreto de
tanto suar e acabo por quebrar meus lindos de dança ao me apresentar ao ar
livre em superfícies de concreto gasto. Mas, eu tenho um reconhecimento muito
maior do público egípcio, faço contatos importantes, e acabo conseguindo
contratos para festas de alta sociedade e que pagam bem organizadas por pessoas
que assistem ao meu show. Nas duas situações eu me beneficio.
Tem uma coisa importante que eu deveria ressaltar aqui... um
pouco de conceitos matemáticos da minha aula de cálculo do colégio. :) No mundo
da dança do ventre egípcia, o “prestígio” é inversamente proporcional ao
dinheiro. Isso significa que, quanto mais prestigioso o local e o trabalho,
menos dinheiro você ganha. Dançar com a sua banda num hotel 5 estrelas não é
tão bem remunerado quanto sacudir a bunda ao som de CD num restaurante ou num
cabaré barato. É assim que as coisas funcionam. Em cabarés e restaurantes as
bailarinas conseguem muitas gorjetas. Somando às vezes alguns milhares de
libras. Nos hotéis e barcos 5 estrelas, dar gorjeta é estritamente proibido,
porque os gerentes acham que é uma coisa degradante – mesmo que a gorjeta seja
colocada na sua mão. Então, eles se esforçam ao máximo para não imitar a
atmosfera dos cabarés da Rua Haram (N.T.: algo como rua do pecado). Eu me
lembro da primeira vez que dancei num cruzeiro no Nilo com uma banda há 2 anos
atrás, uma mulher no meio dos espectadores colocou uma nota de 100 libras na minha mão.
E uma algazarra começou atrás de mim, meu cantor me disse para devolver o
dinheiro para a mulher enquanto eu ainda estava em cena. E eu obedeci. Sem
dúvida, ela ficou um pouco ofendida, e eu envergonhada por ter de devolver a
gorjeta. Dar gorjeta é um símbolo de apreciação, e o artista deve apreciar essa
apreciação. Pelo menos, é assim que eu vejo as coisas.
Deixe-me dizer uma coisa, esse tipo de pensamento vai longe
– um pouco longe demais, se você quer saber o que eu acho. Já topei com
diversos outros problemas ligados ao “prestígio”, tais como nunca lidar
diretamente com os clientes, policiais, gerentes, ou músicos – e a razão disso
tudo é que a bailarina está “acima” dessas coisas. É por isso que ela contrata
um agente para lidar com todas essas pessoas em seu nome.
Junto com o “eu sou boa demais para trabalhar no seu
restaurante, ganhar suas gorjetas e lidar pessoalmente com você” da política do
prestígio, tem também o problema do preço e da disponibilidade. Quando um
agente ou cliente liga pra você – quer dizer, para o seu agente :), para você
se apresentar num casamento ou festa privada, o prestígio dita que você peça um
preço exorbitante e finja que não está realmente interessada no trabalho. Mesmo
que você seja chamada para dançar no casamento da filha do presidente! Mesmo
que você esteja parada em casa e realmente precise do trabalho! O preço alto e
a atitude desleixada fazem com que o cliente pense que você está muito
requisitada, tem mais trabalho do que pode agüentar, e é a melhor bailarina do
mundo. Supostamente. Você pode imaginar o quão isso é difícil para mim, tendo
nascido nos EUA. No meu país, quando você quer trabalhar não importa em qual
área, você precisa expressar todo o seu entusiasmo para possíveis empregadores.
Depois da sua entrevista, você deve telefonar e reiterar o quão interessada
está no trabalho. Isso é uma coisa boa, e faz com que as pessoas queiram te
contratar ao invés de outros competidores. Aqui, é exatamente o oposto.
Ainda tem toda a questão de dançar “droob”. “Droob” é a
palavra que os egípcios usam quando uma bailarina licenciada não aparece para
trabalhar. Ela pode estar doente, ou pode ter decidido pegar um trabalho que
pague melhor em outro lugar. De qualquer forma, o lugar onde ela deveria estar
dançando agora está enrascado, e vai procurar desesperadamente por uma
substituição de última hora – outra bailarina, qualquer bailarina, boa, ruim,
feia, bonita, licenciada ou não. A bailarina substituta se chama “gaya droob”,
isto é, ela está apenas substituindo por uma noite. Por que isso não pode
acontecer de acordo com o protocolo do prestígio na dança do ventre? Porque dá
a impressão de que você não está trabalhando, está disponível, e desesperada
por arranjar um trabalho. E se você não está trabalhando e está desesperada,
deve haver um motivo para isso.
Como vocês já devem ter percebido, tudo isso tem sido um
aprendizado para mim. Sendo americana, eu tenho minha própria maneira de pensar
e fazer as coisas, frequentemente de forma muito diferente dos egípcios. E com
todas essas restrições eu me sinto um pouco asfixiada. De qualquer forma, é
libertador no sentido de que tudo o que você tem que fazer é aparecer e
dançar.;). Eu acho que eu nunca vou comprar totalmente a idéia de prestígio na
dança do ventre, mas como diz o velho ditado “Em Roma, faça como os romanos”.
Bom, o Cairo não é exatamente como Roma, mas estou dando o meu melhor!
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