quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

Estilos e Leitura musical: dançando solos de derbake - Asmahan

Uma dúvida frequente das bailarinas de dança do ventre é como fazer na hora de dançar um solo de derbake ao vivo?

O grande mestre Hossam Ramzy explica que bons solos de derbake são feitos em partes de 4, isto é, cada pedaço do solo se repete 4 vezes, dessa forma, há tempo hábil para a bailarina aperfeiçoar a leitura de cada parte durante as suas repetições, além de dar uma cadência deliciosa na música. Essa forma de ver a leitura parte do princípio que o músico cria e a bailarina transforma o som em movimento (leia tudo sobre o que o mestre fala sobre leitura musical sobre esse ponto de vista no site dele, vale a pena).

Mas e se for ao contrário?

Observando diversos vídeos de bailarinas orientais, podemos encontrar vezes em que a bailarina dança e o músico é que segue, ele é que transforma os movimentos dela em sons.

Há algum tempo atrás me deparei com esse vídeo da bailarina egípcia Asmahan, e toda vez que o assisto eu preciso me segurar para não gargalhar alto. Nesse vídeo, Asmahan está dançando no Marrocos, com um derbakista que não está acostumado com esse tipo de "ponto de vista", e a bronca e as brincadeiras que ela faz por conta da falta de percepção do rapaz são simplesmente imperdíveis.

Vejamos!


A brincadeira começa quando ela começa a tentar mandar na orquestra em mais ou menos 1:45, ela quer um solo dos violinistas e começa a ler lindamente o que o violinista mais sênior está tocando. Daí o vídeo tem um corte em 2:15 para um solo de acordeon (que na verdade é o teclado, mas e daí?), que ela também lê lindamente com movimentos sinuosos. Em 2:35 tem outro corte no vídeo, para o solo de guitarra seguido por um solo do outro teclado. O vídeo infelizmente é muito cortado, pois tem outro corte em 3:18 para o solo da percussão, e aí quando a orquestra volta ela tenta pedir um certo tipo de som logo antes de mais um corte (daí não sabemos se os músicos entenderam! hahahaha) em 3:40. A parte divertida mesmo começa em 3:58. O solo de derbake! Você começa a ver que ela tenta pedir um certo tipo de som ao mover o shimmie para as laterais, mas o derbakista não está nem aí. Aí Asmahan começa a brincar com o público, que ele não está entendendo nada. Depois de mais um corte em 4:48 parece que a coisa deu uma melhorada, mas aí em 5:15 ela meio que perde a paciência, ele não percebeu que ela mudou o movimento e não fez as batidas com sonoridade adequada para o que ela quer, daí ela ignora o que ele está tocando e vai na direção dele olhando fixo e repetindo o movimento sem parar. Ele, coitado, parece não estar entendendo que aquilo é uma chamada  de atenção e mesmo olhando pra ela continua viajando na música da cabeça dele. Em 5:31 ela resolve sacanear mais um pouco e vira para o público, ela não gosta do que está ouvindo. Aí ela pega a cabeça do pobre coitado e aponta pra ela, mostra mais uma vez o movimento, e ainda nada. Até ela pedir pra ele simplesmente parar de tocar, em 5:50, e olhar pra ela. Aí ela mostra o movimento e ele toca, não está certo, ele tenta de novo, não, na terceira tentativa, olha a cara dela, aha! É isso! Aí ela começa a brincar na velocidade, e ele começa a acompanhar, mas logo dá mole (em 6:03), mas se recupera! Aí o público responde, claro! E Asmahan nem pensa duas vezes, vai para a beira do palco, manda o derbakista ficar quieto (em 6:30) e pede palmas para o shimmie dela. O derbakista não se segura e começa a acompanhar, claro, daí ela acrescenta marcações fortes de cabeça e braços e PEDE para o derbakista acompanhar, ele nada, claro. Então, a orquestra retoma em 6:59, e como a música é conhecida, Asmahan consegue trabalhar em cima. Em 7:50 o cantor sobe no palco e ela vai brincar com ele, querendo ver o que ele consegue fazer com o quadril, como ela rouba o microfone dele, ele quase perde a entrada dele da música e precisa pegar correndo o microfone em 8:00! Eu mencionei que esse vídeo é hilário? Pois bem. Ela ainda tenta controlar as coisas, mas, gente, tá difícil!

Vocês conhecem mais algum vídeo engraçado desse jeito com músicos que não estão entendendo as deixas? Se sim, compartilhe nos comentários!

segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

Estilos e leitura musical - Lissa Faker (revisto)

Ano novo que começa, é o momento para alimentar a nossa alma e nos encher de ideias para o ano que está começando!

Esse post deve ser curtinho, mas tem material para estudar por um bom tempo! Venho mostrar a vocês dois vídeos de duas bailarinas maravilhosas dançando a mesma música para que possamos estudar dois estilos diferentes fazendo uma belíssima leitura musical!

A música é Lissa Faker, da maior cantora árabe de todos os tempos, a egípcia Oum Kalthoum, de quem pretendo falar ainda esse ano no blog. Vale a pena reparar nas diferenças de arranjo entre as duas versões.

A primeira bailarina é a "diva-mór" Fifi Abdo, que eu tive o privilégio de ver ao vivo em Porto Alegre. Fifi não é conhecida por ser uma bailarina de muitos passos e variações, pelo contrário, mas a sua genialidade está na forma como ela consegue fazer o mesmo passo parecer sempre novo, espontâneo, na sua incrível presença e carisma. E, claro, no seu quadril bizarramente soltinho. A sua versão de Lissa Faker é um solo de alaúde, instrumento que combina demais com o seu tipo de movimento de quadril mais característico. Vale notar também o público cantando a letra no fundo no final!



Em termos de leitura musical da Fifi, repare que durante a primeira parte (até 2:38) a melodia se repete algumas vezes, e se você prestar atenção você vai ver que ela repete o que ela faz nas repetições. Repare que ela alonga os movimentos no momento em que a melodia dá uma "arrastada", às vezes ignorando o som vibratório do alaúde (fazendo movimentos sinuosos), às vezes acompanhando a vibração com shimmie. Em especial, a última frase dessa primeira parte aparece novamente no final do vídeo, e ela repete os movimentos, linda. Pessoalmente acho lindas as pausas que ela faz em 4:20 e 4:47.

A segunda bailarina é Lucy, outra diva dos anos 90 do Egito, que anda meio sumida ultimamente. Sua versão de Lissa Faker também tem um taksim, mas de qanoun, o que também pede shimmies, mas de outra qualidade, menorzinhos, como ela mostra tão lindamente na sua dança. Mas sua versão da música também tem momentos orquestrados e um curto taksim de flauta, e a sua leitura musical é absolutamente perfeita. É um vídeo para se rever e rever e rever muitas vezes.



 Lucy começa lendo o solo do qanoun com um shimmie bem pequininho, perfeito para o instrumento, depois cresce o movimento na entrada do violino, fazendo mudanças de direção. Quando começa a orquestra, ela cresce junto, marcando com os "alongamentos" da melodia, dando ênfase em 0:49, e continua lendo a melodia com o quadril até o início do acordeon em 0:59. Aí ela faz apenas básicos egípcios, numa leitura bem baladi do instrumento, voltando a leitura da melodia quando volta a orquestra em 1:08. Repare que ela volta com leves deslocamentos, marcando a diferença de tamanho entre os solos e a orquestra, e que no final, em 1:27, ela desloca a leitura pelo corpo, terminando na mão, fechando a frase. Perfeito. Até porque a música segue com o qanoun, que ela lê marcando suas pausas, e quando a orquestra responde em 1:35 ela faz giros, terminando no exato momento em que retorna o qanoun, outra resposta da orquestra ocorre em 1:46, e ela lê perfeitamente a melodia até novo retorno do qanoun em 1:53. Em 2:04 ela repete o que houve em 1:35. Depois durante o solo do qanoun, o violino aparece e ela responde também. Deusa. O fechamento em 2:30 é particularmente bonito. Quando a orquestra retorna ela volta a leitura com leve deslocamento, pegando a melodia todinha. Em 3:02 vem o taksim de flauta, e ela capricha, muda posicionamento e coloca tudo em movimentos de braços, mudando de direção quando o violino surge. A orquestra retorna em 3:10, e a diva pega tudo, finalizando em 3:21. Retorna o qanoun e ela parece que lê ainda mais a melodia do solo, fazendo um deslocamento com a resposta da orquestra em 3:35, e voltando ao qanoun em 3:40. A orquestra volta em 3:54, e ela marca com mudanças de direção, e o qanoun marca de novo presença em 4:01. Em 4:13 a orquestra responde de novo, e ela pega toda a melodia. Fico emocionada quando vejo essas coisas. E aí o qanoun volta, com pequenas marcações da orquestra, que ela pega com variações do quadril ou dos braços. Em 5:00 vem um taksim do qanoun, e ela pega tudo, a danada, o público a anima em 5:21 (yalla!) e a música retoma com o qanoun e a orquestra no fundo, indo para o final da apresentação, e ela termina igual a Fifi!

Aliás, esses dois vídeos, com essas duas versões da mesma música, são maravilhosos para ilustrar a diferença entre esses dois instrumentos musicais e suas leituras. Nada como aprender com grandes mestras!

Para quem quiser, segue também a versão "completa e original" da música! Mas prepare-se, são 46 minutos de divação! Repare que a parte que Lucy e Fifi dançam é apenas o início da música, que aqui não é um taksim, tem uma entrada com a orquestra e só depois Oum Kalthoum começa a cantar.


E que 2016 seja assim, com muito shimmie, muita dança, muito lililili e muita inspiração!

Nota de revisão: Primeiramente eu descrevi a versão que a Fifi dança como um taksim, mas como foi bem apontado pela Rebeca Bayeh, taksim não é só um solo, envolve também improviso. Dentro da versão da Fifi tem taksim, assim como na versão da Lucy, mas a peça em si não é um taksim :-) Aproveitei a revisão para fazer descrições mais detalhadas dos vídeos.