sexta-feira, 24 de maio de 2013

Kisses from Kairo - “Vivendo o sonho”


Domingo, 9 de setembro, 2012


Por Luna do Cairo
Traduzido por Lalitha   


Eu sempre sou pega desprevenida por toda bailarina que me diz que eu estou “vivendo o sonho”. Toda vez que escuto isso tenho vontade de perguntar, sério? Que sonho? Eu nunca sonhei em ser uma bailarina de dança do ventre no Cairo. Eu nem sabia que isso era possível! =D

Verdade seja dita, eu não vim para o Egito com o objetivo de ser uma “estrela”, ou porque alguém inflou o meu ego com mentiras. Eu vim para o Egito porque estava com o coração partido. Eu não tinha terminado com um namorado nem nada do gênero. Mas alguns anos antes, em 2006, eu vi algo que eu realmente queria e achava que não poderia ter. Eu vi a verdadeira dança do ventre egípcia num festival no Cairo, e eu queria desesperadamente aprende-la. Como atingir esse nível de excelência na dança requer muitos anos de vida no Cairo, decidi que era impossível e fiquei deprimida.

Acabou que eu estava errada. Afinal, eu tenho vivido no Cairo há 4 anos. Mesmo assim, na época, se você tivesse me dito que isso iria acontecer, eu teria respondido que eu também acredito na fada do dente. Eu tinha acabado de entrar em Harvard, e passaria os dois anos seguintes da minha vida ali, e depois arranjaria um emprego e teria filhos. Eu não conseguia imaginar interromper o curso natural das coisas para encaixar o Egito. Nem conseguia imaginar a logística necessária para empreender tal esforço. Como eu chegaria lá? Onde eu ficaria? Quem iria me contratar para que eu trabalhasse para pagar o aluguel e todas as aulas de dança? Incertezas demais, muitas dificuldades, sem ter dinheiro.

Até que um dia, as coisas começaram a se encaixar. Enquanto eu estava em Harvard, eu tive a brilhante idéia de concorrer a uma bolsa Fulbright para estudar no Egito. Eu iria pesquisar sobre Dança Oriental ganhando um salário por 9 meses. Eu sabia que fazer com que State Department americano financiasse uma pesquisa sobre dança do ventre era um tiro no escuro, mas cheguei à conclusão que eu não perderia nada tentando. Então eu tentei. Para minha surpresa, eu ganhei uma bolsa. Aparentemente, o comitê da Fulbright estava interessado na minha hipótese de que a islamização mais a estagnação econômica estava causando uma decadência cultural, e que isso estava penalizando as artes performáticas.

Naquele verão, eu me formei em Harvard e me preparei para me mudar para o Egito. Eu pouco sabia que o meu humilde desejo de aprender a dançar iria eventualmente gerar uma carreira profissional como bailarina de dança do ventre no Cairo.

Após uns 6 meses na minha nova vida no Egito, me foi oferecida a oportunidade de dançar num resort no Mar Vermelho, a duas horas do Cairo. O pagamento era ruim, a viagem de carro era perigosa e de embrulhar o estômago. E o que era pior, eu me sentia intimidada de fazer um show de uma hora para um público egípcio. Eu não sabia que músicas dançar, e não me sentia confortável em improvisar. As roupas que eu tinha eram duas que eu não gostava muito. Em outras palavras, eu estava completamente despreparada. Ainda assim agarrei a oportunidade porque, bem, eu nunca recuso uma. Mesmo que eu não esteja preparada para ela. Eu aprendi que oportunidades só aparecem uma vez na vida – sejam elas de amor, trabalho, ou o que quer que seja. Talvez os ricos possam comprar as deles, mas nós, reles mortais, precisamos agarrá-las quando elas aparecem. E fico feliz que eu tenha feito isso. Apesar da minha sensação de incapacidade naquela noite, eu recebi as boas-vindas mais calorosas que uma bailarina pode desejar. Sem dúvida, foi mais do que umas boas-vindas ao palco. Foi uma recepção ao que seria a minha futura carreira, e uma que eu nunca vou esquecer.

Depois de quase dois anos dançando na maioria dos resorts do Mar Vermelho, um jovem dervixe rodopiante que dançava entre os meus shows me perguntou se eu queria fazer um teste no Memphis, um cruzeiro no Nilo onde ele trabalhava. Legalmente falando, eu não poderia ter colocado nem o pé naquele barco. Eu já havia sido contratada no Semíramis, e a lei egípcia proíbe que bailarinas estrangeiras trabalhem em mais de um lugar. Mesmo assim eu aceitei a oferta dele e fiz o teste. Uma combinação do meu sexto sentido mais o fato de que eu nunca tinha dançado no Semíramis (essa era a razão) me fez aceitar.

Para a minha alegria, eu passei no teste. Na mesma noite, o gerente me pediu para trabalhar a noite toda, todas as noites. Eu expliquei que fazer isso seria ilegal – que o máximo que eu me permitiria fazer era dançar duas noites por semana, e que isso seria muito generoso da minha parte. Mas quanto mais eu recusava, mais eles insistiam que conseguiriam a minha permissão legal para dançar se eu saísse do Semíramis. Eu agradeci pela oferta, mas recusei. Em primeiro lugar, eu não acreditava que eles fossem cumprir o prometido. Aqui é tudo da boca pra fora, e as promessas são vazias. Eu não iria cancelar a minha permissão com o Semíramis (mesmo que eu não estivesse dançando) na esperança de que um gerente de um cruzeiro iria honrar as suas promessas. Em segundo lugar, tinha o fator nome/prestígio. Não tem como conseguir nada melhor do que o Semíramis aqui (mesmo sem estar dançando). Me “rebaixar” a um cruzeiro no Nilo seria impensável, e um grande golpe na minha carreira no Egito.

Um mês depois, o momento que o cruzeiro esperava chegou. O gerente do Semíramis cancelou o meu contrato de trabalho e direito a residência, me deixando completamente desamparada. Nós brigamos seriamente porque ele ignorou os meus pedidos para viajar para casa por conta de uma morte na minha família. Então ele me despediu.

Não posso negar. Aquele cruzeiro no Nilo não parecia tão ruim depois dessa experiência horrorosa. Eu informei ao gerente do cruzeiro que o sonho dele tinha se tornado realidade – que eu tinha sido despedida do Semíramis – e que agora estava disponível. Ouvindo essa notícia, o gerente geral do cruzeiro não perdeu tempo em me contratar. Ele já tinha percebido um aumento nos lucros depois de apenas um mês em que eu estava dançando lá, por isso não queria me perder para a polícia da dança do ventre ou para outro estabelecimento. Na verdade, ele não só me contratou como entrou com um pedido de licença para que o cruzeiro pudesse contratar bailarinas estrangeiras, um passo que tomou muito tempo e dinheiro. Desde então, eu tenho dançado lá toda noite com a minha banda – não só no cruzeiro, mas também em casamentos e outros tipos de festa. Também já apareci na TV egípcia como solista e em clipes musicais. No que diz respeito a isso, a minha vida realmente tem sido um sonho.

Também tem sido um sonho o fato de que eu aprendi a dançar do jeito que eu sempre quis aprender. Isso não teria acontecido se eu não tivesse conseguido a permissão legal para dançar. Claro, aulas são importantes. Mas não há nada como o palco e um punhado de músicos toda noite para te ensinar a dançar. Tem algo na espontaneidade de tudo isso, na interação com o público egípcio, que te dá um bom entendimento da música e do sentimento dessa dança. As performances constantes também me mantêm sob pressão. Eu tenho um público cativo, assim como agentes com quem trabalho com freqüência, então tenho que estar sempre apresentando coisas novas. Além disso, eu enjôo rápido. Isso significa que estou sempre pensando em novas montagens e novas roupas. É divertido, mas dá muito trabalho. Se não estou ensaiando com a minha banda, estou procurando novos materiais ou desenhando e comprando novas roupas. É realmente um trabalho de tempo integral, e eu tenho muita sorte de poder dedicar todo o meu tempo a isso.

Apesar do aspecto fantasioso do meu trabalho como bailarina de dança do ventre no Cairo, eu acho que é importante colocar as coisas sob perspectiva. O fato de eu ter conseguido um emprego fixo aqui foi um golpe de sorte. Alguns podem dizer que foi destino. Eu não sabia nem que o Memphis existia nem pedi para fazer o teste. E o fato deles quererem me contratar de verdade foi algo fora do padrão. A maioria dos lugares não são generosos a ponto de fazer contratos com bailarinas estrangeiras, muito menos pagando todas as taxas necessárias para isso. E ainda por cima, essa oportunidade veio depois de dois anos de só seguir o fluxo – e não procurando por uma oportunidade para dançar, mas aceitando aquelas que apareciam para mim. Também veio depois de dois anos de sofrimento e de desilusão. Apesar de eu nunca ter intencionado trabalhar no Egito, era exatamente isso que estava acontecendo. E isso estava se tornando uma fonte de brigas na maioria dos meus relacionamentos pessoais e profissionais. Então, ao mesmo tempo em que percebo que o desenrolar da minha carreira tem um final de conto de fadas (ou início, dependendo de como você vê), eu ainda acho que as pessoas se enganam um pouco quando dizem que estou “vivendo o sonho”.

Verdade seja dita, esse sonho vira pesadelo mais frequentemente do que eu gostaria de admitir. Apesar de todas as vantagens, dançar no Cairo requer muito trabalho duro. Na verdade, reparei que o trabalho duro vem na mesma proporção que a satisfação e o sucesso que você atinge. Para começar, eu me tornei muito defensiva. Tem sempre um monte de gente no meio tentando tirar vantagem em cima de você, seja pelo dinheiro ou pelo sexo. Não acontece sempre, mas é freqüente o suficiente para que o meu modo padrão de lidar com as pessoas seja na defensiva. Especialmente com aqueles que eu ainda não tenho uma relação de confiança profissional. Para mim, todos são culpados até que se provem inocentes.

Além disso, tem as questões legais. A “polícia da dança do ventre”, ou musanafat e adab para ser exata. São eles que regulam as licenças, e garantem que você não está “indecente” na sua dança ou na sua roupa. Quando esses caras pegam no seu pé, a coisa pode ficar feia. As penalidades incluem multas, prisão e deportação para estrangeiras, e dependem de diversos fatores. A violação que você cometeu é um deles. Dançar sem cobrir a barriga é uma violação menos grave do que dançar ilegalmente. Dançar sem cobrir a barriga e ilegalmente é muito pior. :) Se a polícia foi chamada ou não por outra bailarina com ciúmes é outro fator. Se esse for o caso, você pode ser perdoada ou punida severamente por suas violações reais ou empíricas. Isso vai depender do tipo de relacionamento entre o policial e a bailarina que o enviou, claro. :)

Num outro nível, se adaptar à cultura requer lidar com alguns desafios. Alguns conceitos culturais e religiosos pré-definidos sobre a mulher não combinam comigo. Nem os restritos códigos não-oficiais de conduta e vestuário. Sem mencionar o constante assédio sexual. Isso pode ser massacrante. Ter que estar o tempo todo se cobrindo, mesmo quando está um calor insuportável do lado de fora, ter que esconder a minha profissão de todos para não ser expulsa do meu apartamento (o que já me aconteceu antes), não poder me expressar livremente – todas essas coisas podem ser extremamente irritantes.

Sob todas as condições que descrevi, você poderia imaginar que uma comunidade de dança acolhedora seria o meio ideal para se apoiar. Mas, infelizmente, esse não é o caso. Apesar de haver aquelas almas verdadeiras que eu amo como se fossem minha família, a comunidade em geral é a antítese de acolhedora. Você descobre que conforme vai subindo na carreira, fofocas difamatórias e falsas acusações começam a proliferar. Muitos ou inventam fofocas sobre o que você fez para conseguir o seu emprego, ou se mostram muito inclinados em acreditar nas piores histórias sobre você. Alguns até tentam destruir a sua carreira. Todo mundo ama um Zé-ninguém. Mas poucos gostam realmente de alguém. E é por isso que você não sabe quem são seus verdadeiros amigos até que coisas boas aconteçam para você. Juro que parece que você está novamente na escola. Só que dessa vez eu já sei como me erguer e me manter acima dessas coisas de um jeito que eu não sabia aos 15 anos de idade. Não importa o que você diga ou faça, não importa como você dança, sempre vai ter alguém te odiando, criticando, ridicularizando e te colocando para baixo. Então você chega num ponto em que simplesmente para de se importar – um ponto no qual você se sente livre para ser quem você é sem se preocupar com o que os outros pensam. Pode parecer desagradável, mas também é libertador.

Contudo, não é sobre isso que quero falar. Isso vem com o pacote de dançar no Egito, e na verdade tem sido uma fonte para o meu crescimento pessoal. Pessoalmente, eu acho que o meu maior desafio não é nem a cultura nem o ambiente pouco amigável da dança. É algo mais interno do que isso. É algo que eu gosto de chamar de síndrome do “e se”. Eu amo o meu trabalho e sei o quão sortuda eu sou por tê-lo. Mas o questionamento do e se eu tivesse feito diferente me atormenta. Quer dizer, vamos encarar a verdade. Uma mulher comum não faria as decisões que eu fiz na vida. Uma pessoa comum não se desviaria tanto da estrada testada e aprovada para o sucesso para seguir um sonho vago de aprender a dançar num país do terceiro mundo. E apesar de muitas pessoas me louvarem por isso, talvez haja uma razão pela qual a estrada menos percorrida é menos percorrida. Levar uma vida não-convencional pode ser divertido, mas significa se colocar numa vida feita de incertezas e improvisos. E não quero dizer que isso acontece no palco. Eu não tenho mais uma “coreografia” para a vida como costumava ter. Eu abandonei isso quatro anos atrás. Eu troquei os ensaios pela “vida real”. Estou apenas vivendo a vida, um dia de cada vez. Boêmia. Certamente não é a vida que imaginei para mim mesma. E muito assustadora.

Hoje em dia, com todo o sofrimento que acontece no mundo, começo a me sentir culpada por ter o trabalho dos meus sonhos. Tem gente lutando para conseguir colocar comida na mesa, e pessoas pelo mundo todo dando as suas vidas pela liberdade. Uma delas era amiga minha, e fez isso recentemente na Síria. E aqui estou eu, dançando. Celebrando. O quê, eu não sei. Mas as pessoas dizem que dança é celebração. Então isso começa a parecer errado. Um pouco egoísta... Sem sentido... Vazio.


O que quer que seja que eu estou passando, espero sinceramente que seja temporário, e que eu saia dessa. Me esforcei demais em lançar a minha carreira só para desistir porque acho que dançar é “haram”, apesar de ser por motivos próprios. (Engraçado eu ter mais medo de mim mesma do que da Irmandade Muçulmana proibir a dança!) Se não for mais nada, a forma como estou me sentindo é a prova de que estou vivendo um sonho. Talvez não “O” sonho, mas um sonho num sentido de que tudo o que acontece, seja bom ou ruim, é maior do que a vida. E nos dá essa sensação de irrealidade. Lá no fundo, tem uma parte de mim que gosta disso. Talvez seja por isso que estou rezando para não acordar tão cedo.

quinta-feira, 9 de maio de 2013

Livro do Mês: A Ponte das Turquesas


Ainda no clima de sugerir livros diferentes (cansei um pouco de sugerir apenas livros de literatura ou que falem sobre o Egito), vamos aproveitar o final da novela Salve Jorge e falar sobre a Turquia!

A Ponte das Turquesas foi o livro que me convenceu a escolher a Turquia como destino para a minha lua de mel em 2012 e que virou o diário de viagem que vocês podem ler aqui. Escrito pela historiadora brasileira  Fernanda de Camargo-Moro, o livro é um misto de memórias, relatos de viagem, história e livro de culinária, e de quebra ainda consegue apresentar Istambul como um lugar mágico, cheio de mistérios e de coisas interessantes para descobrir (o que é uma descrição muito realista, diga-se de passagem).

Capa da edição disponível nas melhores livrarias
É engraçado quando começamos a estudar o mundo árabe como às vezes esquecemos dessa cidade tão importante na história mundial, afinal não é qualquer lugar que pode dizer que tem raízes clássicas gregas, resquícios romanos e cristãos e mais tarde ainda virou a capital do Império Otomano, que é muçulmano. É tanta informação e tanta história, importante tanto para o Ocidente quanto para o Oriente, que é difícil acreditar que a autora conseguiu resumir tudo isso num só livro.

E que livro! Além de ser bem escrito (confesso que fiquei receosa por conta de traumas com livros de história soporíferos na época da escola), ele traz histórias pessoais interessantes, e inclui não só a história da cidade, mas também da gastronomia ali presente! É de ficar com água na boca! E como babamos durante essa leitura, se não é com as receitas, é com as belíssimas descrições de Istambul, que faz jus aos elogios quando pisamos os pés por lá e vemos essa jóia da arquitetura ao vivo.

Fica a dica de uma leitura leve, diferente, informativa e cativante :-)

E se alguém fizer uma receita desse livro, por favor me chame!!!!

Vocês podem ver a resenha original do livro aqui.

sexta-feira, 3 de maio de 2013

Kisses from Kairo - Sentimentos sobre Sentimento




Sábado, 4 de agosto de 2012


Por Luna do Cairo
Traduzido por Lalitha   


Vamos encarar. Nós, bailarinas estrangeiras, somos muito pressionadas. Nós não só temos que ser lindas, mas temos que dançar da forma mais egípcia possível. Algumas chegam mais perto do que outras, mas nenhuma de nós chega na casa dos 100%. Pessoalmente, eu acho que é impossível. Ser egípcia é uma dessas coisas com a qual ou você nasce com ou sem. Não importa o quanto você faça imersão na cultura ou quão bem você fale o árabe, nunca seremos tão egípcias quanto as egípcias. E, claro, nunca seremos mais egípcias do que uma. :) Não que ser egípcia seja o objetivo, ou que não ser seja o fim do mundo. Nossa “desvantagem”, no entanto, é sermos sempre comparadas às bailarinas egípcias. E um dos pontos de comparação é o sentimento.

“Sentimento” é uma dessas palavras que não tem um significado real. Mesmo assim, a usamos o tempo todo para se referir a um conceito vago do que é egípcio na dança. Não podemos definir exatamente o que é; é a parte da dança que não pode ser definida, quantificada, calculada ou ensinada. Mas de alguma forma, nós reconhecemos quando vemos. Ainda mais interessante, sentimento é o que muitas bailarinas egípcias (dizem que) têm, e que nós, não-egípcias, nos esforçamos por obter.

Dado que sentimento é um conceito tão vago, achei que seria divertido fazer uma lista das minhas idéias sobre isso – sobre o que é, e o que não é. Mantenham em mente que essas são as minhas idéias subjetivas baseadas na experiência e na observação. Elas são, portanto, discutíveis. Existe mais de uma forma certa de entender as coisas, então você não precisa concordar com tudo o que eu escrevo. E isso não significa que uma de nós está errada.

Quando os egípcios falam de sentimento, eles frequentemente afirmam que é o falta às bailarinas estrangeiras. Eles dizem que nós temos uma técnica ótima, mas que nossa dança é mecânica e chata. Eles acham que muitas de nós não têm essa essência – esse espírito característico da dança oriental. Eles não sabem se é porque nós não entendemos as letras ou a instrumentalidade árabes, ou porque não somos egípcias. Enquanto não concordamos que falta sentimento a todas, eu acredito que para muitas de nós é um pouco das duas coisas.

O sentimento surge quando uma bailarina educada está fisicamente, intelectualmente, e emocionalmente em sintonia com a música, e consegue transmitir isso para o público. Eu frisei o educada porque essa conexão só acontece quando nós adquirimos um conhecimento profundo sobre a dança. Quando dominamos a técnica, entendemos a instrumentalidade árabe, e compreendemos a letra da música. Quando sabemos que tipos de movimentos combinam com cada instrumento. Quando nos tornamos intimamente familiarizadas com as origens culturais da dança. Quando conhecemos todas as regras e sabemos quando podemos quebrá-las. Quando alcançamos esse nível de conhecimento, isso se reflete na nossa dança. Mas o que é isso exatamente?

Para mim, sentimento é, antes de qualquer coisa, a forma como a bailarina executa os movimentos. Uma questão de estilo, se você quiser colocar assim. Dependendo da energia por trás, um movimento pode parecer turco, egípcio, tipo hip-hop, ou parecido com nada. Exatamente o mesmo movimento, com ênfase diferente, logo um sentimento diferente. É como se fosse um sotaque, se pensarmos em línguas estrangeiras. Nos Estados Unidos, por exemplo, nos lugares onde há muitos imigrantes não é incomum escutarmos algumas palavras carregadas em sotaque indiano, latino ou asiático. Apesar de todos falarmos a mesma língua, o inglês de cada grupo étnico tem um som distinto, ou um sentimento. E isso não é uma coisa ruim.

O mesmo se aplica à dança. Quando eu comecei a fazer aulas em Nova Iorque, uma das minhas professoras me disse que a minha dança não parecia (i.e. não tinha o “sentimento”) do Oriente Médio (pensando agora, nem a dela :P). Claro, eu estava fazendo todos os movimentos corretamente, mas a forma como eu fazia os movimentos não era muito oriental, muito menos egípcia. Os meus braços, que eu mantinha extremamente estendidos, estavam mais apropriados para direcionamento do trânsito do que para a dança do ventre. Meus movimentos de quadril eram tão grandes, perfeitos e violentos que eles pareceriam mais de hip-hop do que de dança do ventre. Vale dizer que eu tinha estudado no passado um pouco de hip-hop e de jazz, então era daí que vinha o “sotaque” com o qual eu falava a língua da dança egípcia. Desde então eu aprendi a ser mais suave e fazer os meus movimentos menores. Livrei-me do meu sotaque, por assim dizer. :) E eu aprendi que os movimentos de quadril não precisam ser tão prefeitos ao ponto de parecerem robóticos.

O sentimento é mais do que uma questão de estilo, entretanto. Parte do que queremos dizer quando dizemos que uma bailarina dança com sentimento é que ela interpreta corretamente uma música. Em outras palavras, que ela tem um bom ouvido. Ela sabe combinar os movimentos com os instrumentos. Ela sabe que o acordeom, por exemplo, pede que ela faça movimentos sinuosos, como oitos e ondulações. E que o derbake obviamente pede movimentos mais percussivos. Mais importante, ela sabe o que fazer quando tem diversos instrumentos tocando ao mesmo tempo... como, por exemplo, o ritmo se acelera durante um solo de acordeom. Uma bailarina com uma boa percepção vai saber quando ignorar o derbake, quando ignorar o acordeom, e quando se utilizar de ambos. E isso é algo que vem com a experiência.

Tem outro aspecto nessa história toda de sentimento que eu quero mencionar, principalmente porque parece haver todo um desentendimento sobre o assunto. EMOÇÃO. Como todos já puderam reparar, é muito comum para as bailarinas egípcias de hoje em dia transmitirem a emoção das letras com expressões faciais e gestos com as mãos. Também é muito comum que as estrangeiras as imitem. Às vezes funciona. Mas é muito frequente, já que a maioria das bailarinas não-egípcias não entende as letras em árabe sem uma tradução, que a imitação delas seja exatamente isso – uma imitação. E pode parecer falso e exagerado.

Eu tenho reparado muito nisso recentemente, quanto mais eu tenho dado workshops fora do Egito e visto performances das alunas. Esse é um problema que as bailarinas têm em qualquer lugar, mas especialmente na Europa, onde a cultura da dança do ventre é muito competitiva. Em qualquer final de semana, você pode encontrar competições acontecendo por todo o continente. Isso resulta em bailarinas lutando para se sobrepor às outras de qualquer forma. E uma das formas de fazer isso é fazendo expressões extremamente exageradas de alegria, dor ou qualquer outra emoção que as letras estejam transmitindo. Ou fazendo gestos extremamente exagerados. É como se elas achassem que vão acertar no “sentimento” desse jeito.

Esse é o problema. Existe uma diferença entre sentimento e atuação. Sentimento se trata principalmente de interpretação musical. E apesar de às vezes incluir a expressão da emoção, não se trata de fazer mímicas no palco, ou sobre provar para o público (ou a banca) que você entende árabe. Enquanto é sempre bom conhecer a letra ou até mesmo cantar junto se você conseguir, fazer caretas durante toda a música para provar que você entende árabe é desnecessário. Fazer demais de uma coisa boa é ruim.

Tem uma performance que eu nunca vou esquecer. Foi de uma bailarina européia num festival egípcio há alguns anos atrás. A moça estava dançando uma música sobre amor não correspondido, e ficava fazendo repetidamente movimentos violentos de esfaquear... como se ela estivesse se apunhalando nos quadris e no coração. Ela então se jogou no palco e bateu no chão com a mão ao som da palavra “bahibak”, que significa “eu te amo”. Ela definitivamente me deixou impressionada, mas pelas razões erradas. Eu me senti como se tivesse sido atacada – como se ela tivesse me forçado a sentir o que ela estava sentindo. Uma coisa é expressar a emoção da música. Outra coisa é subir no palco e FORÇAR AS PESSOAS A SENTIR CARAMBA! Que era exatamente o que ela estava fazendo. :)

Eu já vi muitas performances assim. E eu saio delas pensando, se ela tivesse reduzido uns 50%, dançado mais e atuado menos, ela teria sido convincente.

A cultura da competição não é a única culpada pela atuação exagerada. Alguns professores de dança egípcios muito famosos também têm culpa. Nos últimos anos, tem havido uma tendência cada vez maior de vários professores egípcios de influência de fazerem caras e bocas durante toda a música. Isso está acontecendo porque eles têm escolhido músicas pops mais novas que tem composição e instrumentação inferiores aos clássicos mais antigos, e que não deveriam ser dançadas! Porque essas músicas não têm nenhuma complexidade musical, não tem mudança de ritmo, não têm instrumentos de corda, a única coisa que dá para fazer é seguir as letras com mímicas e caras e bocas.

É triste que isso esteja se tornando tão comum. Mas parece ser o resultado da preguiça e da falta de cuidado que surgem quando professores estrelas se voltam exclusivamente para o comércio. Quando isso acontece, eles param de pensar e de se esforçar na arte. Eles simplesmente pegam o último sucesso pop, fazem uma coreografia mais ou menos cheia de caras e bocas, e ensinam em workshops por todo o mundo. E então chamam isso de “sentimento”. Não é à toa que todos nós começamos a fazer caretas! Não só estamos imitando as bailarinas egípcias, mas estamos sendo ensinadas a fazer isso por professores egípcios que passamos a respeitar e admirar!

Então, apenas para deixar claro: só porque uma música é nova ou rápida, não quer dizer que ela deva ser dançada. E não é porque alguém que sabe mais do que você está apresentando um lixo, que devemos aceitar cegamente. Mas é exatamente isso que está acontecendo. Justamente porque muitas de nós, compreensivelmente, acreditam que qualquer coisa que um egípcio faça está certa, é que nós estamos seguindo essa tendência e levando a novos extremos. Que, é o que eu queria dizer, não é a definição de sentimento.

Do lado oposto do espectro, estão aquelas egípcias que sentem sim – talvez um pouco demais. :) Na verdade, às vezes elas sentem a emoção da música de forma tão intensa que elas esquecem de dançar! Elas cantam e gritam e fazem gestos enlouquecidos e jogam um shimmie aqui e outro ali... eu juro que às vezes eu sinto como se estivesse assistindo a alguém bêbedo no karaokê! :)~ Isso pode ser tão engraçado quanto esquisito ao mesmo tempo. Engraçado porque elas esquecem de si mesmas e de que estão num palco. Esquisito porque elas desnudam completamente as suas almas para o público. E, acredite em mim, você não quer estar em nenhum desses papéis. :) Como público, você não quer ser sujeitado a isso. Como bailarina, você não quer estar na posição onde toda a sua disposição psicológica está às vistas do público. É informação demais, e uma invasão ao direito de privacidade do público. E eu não quero dizer à privacidade deles, quero dizer a nossa. Sim, o público tem o direito à privacidade do artista.

Pense sobre o assunto. Não queremos assustar alguém da platéia, ou mostrar a eles nossas partes íntimas – mais por consideração a eles do que por nós mesmas. Então porque iríamos mostrar a eles a parte mais íntima, mais privada, da nossa alma? Isso se chama nudez psicológica, e é provável que o seu público não queira ver isso.

Pessoalmente, quando me confronto com essa situação, eu me pego psicanalisando a bailarina. Eu começo a tentar entendê-la, e a imaginar todo o tipo de coisa sobre a sua personalidade, os seus vícios, sua vida, e diversas outras coisas que não são da minha conta. E é por isso que nós, como artistas, não deveríamos colocar nosso público nessa posição. Nós estamos lá para deleitar o nosso público com uma boa dança, não para começar uma sessão pessoal de meditação/busca da alma com nós mesmas. O palco é sobre eles, não nós. Não só esses sentimentos pessoais podem fazer o seu público ficar desconfortável, como tiram de nós todo o mistério. E eu não quero dizer apenas o mistério físico, tampouco, apesar dele também ser importante. Eu quero dizer o mistério emocional, psicológico. Assim que perdemos o nosso mistério, não há mais razão para o público voltar e nos assistir novamente. Eles já viram tudo. Não há mais nada para eles descobrirem.

Eu acho que o objetivo desse post era dizer que quando estamos no palco, nós estamos atrás do volante. Nós podemos e devemos controlar o quanto de nós mesmas nós mostramos para o público. Lembre-se, como em tudo, muito de qualquer coisa nunca pode ser bom. Isso também se aplica ao sentimento e à atuação. O truque para dançar com sentimento é atingir um equilíbrio. Nós devemos ser capazes de expressar tanto a música quanto a letra de uma forma que seja verdadeira para nós mesmas, mas sem exagerar. Isso não só vai tornar a nossa dança mais genuína, mas também mais convincente.

Como sempre, comentários, questionamentos ou reclamações são bem-vindos. :)