sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Kisses from Kairo - Alarme Falso



Segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Por Luna do Cairo
Traduzido por Lalitha  


Atenção: se você tem alguma aversão a produtos ou problemas femininos, ou é uma pessoa sensível, pare por aqui.

Eu realmente não tinha a intenção de que o meu primeiro post do ano fosse sobre a minha menstruação, mas bom, é melhor do que um post sentimental sobre resoluções para o Ano Novo. Os anos começam e terminam e eu nunca faço resoluções. Elas não servem para nada e ninguém as cumpre mesmo. Além disso, não há nada de especial no dia 1° de janeiro. Até onde eu sei, o dia 29 de julho é tão bom quanto o dia 1° de janeiro para fazer resoluções. Porque não existe uma coisa chamada tempo. Não aqui no Egito de qualquer forma.

Voltando à minha menstruação. Não há nada mais próximo do significado de tempo do que a minha menstruação no meu mundinho. Ela é sempre pontual e dolorosa, e eu sempre posso contar que ela vai aparecer (e isso é mais do que posso dizer sobre a maioria das pessoas, eu inclusive). E de forma muito conveniente, ela veio me aterrorizar no dia 1° de janeiro, bem à meia noite, para ser exata. Não podia haver uma maneira melhor de começar o ano, não é? :) ~

A razão por eu estar escrevendo sobre a minha menstruação é que eu acabei passeando por 4 hospitais por causa dela. Em um dos meus muitos momentos avoados, eu coloquei um tampão sem me lembrar se eu havia tirado o anterior. E sendo a medrosa que eu sou, entrei em pânico. Se um tampão for deixado lá dentro ele pode causar Síndrome do Choque Tóxico (SCT), que pode ser fatal. Isso sem mencionar que eu tenho unhas extremamente longas, e eu não iria cortá-las para tirar um tampão.

A 1 hora da manhã, com todas as clínicas privadas fechadas, eu não tinha outra opção a não ser ir a um hospital. Então eu fui ao mais próximo a minha casa. Mas eu saí de lá muito antes do que eu pretendia. A recepcionista me disse que por ser estrangeira que teria que pagar o dobro do que uma egípcia pagaria para ser atendida. Pelo amor de deus, eu sou uma residente que paga impostos e que gera mais retorno nessa economia do que a maioria dos egípcios, e o hospital quer dar uma de Khan el-Khalili comigo?

Determinada a ser examinada, eu fui a um hospital com fama internacional chamado Mustashfa Al-Salam Al-Dawli. Entrei na sala de emergência e pedi para ver um ginecologista. Havia 2 na equipe médica, mas primeiro eu teria que explicar o problema para a enfermeira. E eu fiz exatamente isso, dizendo a ela que eu tinha um tampão “perdido lá dentro” e precisava que ele fosse removido.

“Você tem o que?” ela perguntou. “Um tampão”, eu respondi. “Você sabe, um Tampax?”. A enfermeira não tinha a menor idéia do eu estava falando, então eu expliquei a ela o que é um tampão. Ela ainda assim não entendeu, então eu tirei um da minha bolsa e abri, pensando que se ela visse, ela entenderia.

Nada. “Tá bom, você poderia chamar o médico?” eu perguntei. Claro que um ginecologista saberia do que eu estava falando. A enfermeira ligou para o médico e tentou explicar a minha situação, mas sem sucesso. Ela não tinha a menor idéia do que é um tampão. Eu tentei explicar novamente, mas só para ouvir ela me dizer que não havia nada que ela pudesse fazer para me ajudar. “Tudo bem, enfermeira, e que tal o outro médico?”. Ela ligou pra ele, nós conversamos, e eu fui embora. Ele também não tinha a menor idéia do que é um tampão, e eu achei que não valia à pena pagar para ver o que ia acontecer.

Danada da vida, e ficando cada vez mais apavorada, eu fui para o Qasr El-Aini, que supostamente é um hospital francês. Certamente os franceses sabem alguma coisa sobre tampões.

Nada. A única coisa francesa naquele hospital era a sua história. Eu fiz o mesmo discurso para o ginecologista residente de lá e peguei o tampão aberto na minha bolsa para mostrar, só para dar de cara com o olhar confuso dele e ouvir “me desculpe, eu não sei o que é isso então não posso te ajudar”.

Aaaaaaaaaaaaaaahhhhhhh! Eu não me importo de que cultura você é... como você pode se auto-intitular um ginecologista e não saber o que é um tampão?!? E o que eu tenho que fazer para que alguém coloque a mão lá dentro para tirar alguma coisa? Ir a um mecânico? Dizer a eles que tem um pote de ouro no final do arco-íris? Meu deus! Você poderia imaginar que como a maioria dos ginecologistas egípcios é homem seria mais fácil ser examinada.

Depois disso, fui andando até um hospital público ali perto. Já eram 3 horas da manhã, e eu estava cansada, com frio, irritada e em pânico. Para piorar ainda mais as coisas, eu ouvi uma mulher gritando “assassinato” de dentro do hospital enquanto eu ainda estava numa boa distância. “Ó céus, isso é um hospital ou uma sala de tortura?” pensei comigo mesma.

Relutante, entrei no hospital e pedi para ver o ginecologista. Um homem jovem veio me cumprimentar e perguntou qual era o problema. “Doutor”, eu disse em árabe, “você sabe o que é um tampão?” “Sim”, ele respondeu. “Tem certeza? Eu devo mostrar a você?” “Não precisa”, ele respondeu. “O que aconteceu?”, e eu contei ao médico que eu estava no meu beríodo menstrual, e que achava que eu tinha perdido acidentalmente um tampão lá dentro, e que eu precisava que ele fosse removido antes que causasse uma infecção bacteriana potencialmente fatal.

E então o médico disse as palavras mágicas: “Síndrumi du chuqui túxicu” :P

“Thank you!” eu soltei em inglês. “Você realmente sabe do que estou falando! Eu estive em 3 hospitais e ninguém sabe o que é um tampão, quanto mais SCT!”. O médico riu. “Heeya di masr.”  Esse é o Egito. :) Então ele tirou a minha pressão e me disse para sentar e esperar enquanto ele terminava as coisas com a paciente que gritava.

Fiquei sentada numa salinha de recepção por pelo menos meia hora, ansiosa para ser atendida. Nesse meio tempo, a paciente dele escapuliu da sala de atendimento e parou na minha frente. Ela estava gemendo, e havia manchas de sangue por toda a sua galabiyya de veludo bege. Eu, por minha vez, estava começando a pensar duas vezes sobre deixar esse médico encostar em mim. E estava prestes a ir embora...

... só que fiquei distraída com a visão de uma pobre mulher que tentava tirar nada menos do que 12 brincos das orelhas. Aparentemente, ela estava se preparando para fazer uma tomografia computadorizada, mas estava tendo dificuldade em retirar todas aquelas tarraxas de 24 quilates. Elas deviam estar bem presas, porque a cada puxada ou torcida que ela dava, mais lágrimas escorriam pelo seu rosto.

Nesse ponto, quase toda a equipe médica já havia tentando ajudá-la. Um enfermeiro baixinho e sem quase nenhum dente da frente, se aproximou das orelhas da mulher com um par de pinças médicas bem compridas e desatarraxou a força os brincos, um de cada vez. Que... m... é essa?! Eu não podia acreditar no que estava vendo. Se eu não tivesse ficado enjoada com o pus que saía das orelhas inflamadas dela, eu provavelmente teria me oferecido para ajudar. Mas ao invés disso, fiquei de joelhos catando os brincos e tarraxas que iam caindo.

Minha caça aos brincos foi interrompida pelo médico, que agora estava pronto para me atender. Ele me levou para uma área cercada por cortinas com duas mesas de exame. Ele, então, me deu um lençol para me enrolar da cintura para baixo e depois saiu para que eu me despisse. Mas eu não conseguia arranjar forças para tirar as calças. Para começar, o lençol estava coberto com manchas de todo tipo de material biológico imaginável... vermelho, amarelo, marrom, verde. As mesas de exame estavam nuas, sem aqueles barulhentos papéis que os médicos colocam nas mesas por razões higiênicas nos EUA. E havia diversos lenços de papel sujos de sangue pelo chão. Oi? Por que não havia uma lixeira de material biológico hospitalar aqui?!?

(Falando de lixeiras de material biológico hospitalar, eu me lembrei da vez em que eu acompanhei uma amiga minha ao hospital para fazer uma lipoaspiração nas coxas. Quando o procedimento acabou, o médico nos mandou para casa com um saco plástico preto com o que ele tinha retirado de gordura das coxas dela! Imagine só! Carregar a sua própria gordura por aí num saco plástico! Ele provavelmente não tinha nenhum lugar para jogar aquilo fora. E o saco estava pesado também. :D )

Se assim é que são os hospitais egípcios, que tipo de inferno devem ser os presídios?

Então lá estava eu, paralisada de nojo. Eu não sabia o que fazer. Ir embora? Reclamar? Vomitar? Então eu me lembrei de um bom conselho que eu recebi quando eu estava na Síria e queria sair do meu apartamento porque eu não estava me dando muito bem com o banheiro turco: “Não seja uma americana mimada”. Sem dúvida.

Inferno. Se eu consegui lidar com os banheiros turcos tendo uma intoxicação alimentar violenta, eu poderia sobreviver a um exame ginecológico nesse hospital. Além disso, eu queria tirar aquele tampão. Então eu pedi um lençol limpo e decidi encarar. Só que a enfermeira tirou um lençol igualmente sujo de uma mesa de exame próxima e me entregou. Não... não é isso o que eu quis dizer com limpo! :P

Rapidamente eu entendi que isso era o melhor que eu iria conseguir. Então eu tirei a parte de baixo das roupas, enrolei de qualquer jeito aquele pano nojento em torno de mim, e chamei o médico. Graças a deus, eu não precisei pedir que ele usasse luvas de látex. Então o médico me fez uma série de perguntas, uma das quais foi “você é virgem?”. Bom, o último ginecologista que me examinou parecia achar que sim. Conta?

E então, o médico levantou as mãos, preparado, e me disse no seu inglês bem egípcio “A-agura eu vou exblorar a sua vagina.

>*D

Ai. Meu. Deus. Eu não consegui me controlar. Eu comecei a rir na cara do pobre homem! Ele vai exblorar minha vagina! Ótima escolha de palavras. :) O médico ficou vermelho, e eu me desculpei de todas as formas possíveis, mas eu não conseguia conter o riso. Mas, assim que eu consegui me recompor, o médico começou a “exblorar”. E eu comecei a gritar, assim como a paciente anterior. Aqueles foram facilmente os 10 segundos mais dolorosos que eu experimentei em muito tempo. E foi tudo a toa. Porque afinal de contas, eu não tinha perdido um tampão lá dentro. Eu havia esquecido que eu tinha tirado. Hamdullah. (N.T.: palavra em árabe que quer dizer graças a Allah)

E como o hospital era estatal, eu não precisei gastar nem um centavo com esse alarme falso – nem mesmo sendo estrangeira. E eu estava agradecida por isso, e agradecida por ter conhecido um ginecologista experiente. Não sei se eu jamais irei naquele lugar novamente, mas quem sabe? Talvez o médico atenda em casa. :D

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Para ler um post do Ventre da Dança só sobre tipos de absorventes e suas vantagens e desvantagens clique aqui :-)

terça-feira, 28 de agosto de 2012

Resenha de DVD - Suhaila Salimpour - Bellydance Fitness Fusion PILATES



Continuando a série de posts sobre DVDs interessantes para se ter em casa, vamos continuar com a série de DVDs da Suhaila Salimpour sobre fusões de dança do ventre. O terceiro DVD dessa série é o de fusão com Pilates.

Caixa com a coleção completa



Esse terceiro DVD segue mais a linha de malhação do primeiro, de glúteos (resenha  aqui), só que o foco é fortalecimento das pernas e abdômen. Apesar dos exercícios não serem aeróbicos, se prepare para suar! Apesar do que diz na capa, o DVD da Suhaila novamente não é para iniciantes, pois é preciso preparo físico para ir até o final. Os exercícios até são básicos, mas ela chega em velocidades não muito iniciantes, e tem a parte de força e preparo físico que dificultam a vida de quem acabou de começar.

O aquecimento já começa forte, com um bom alongamento e fortalecimento das pernas. Depois vem uma sessão longa de fortalecimento das pernas, com braços e muito abdômen e costas (é para deixar as pernas bambas!), mais alongamento das pernas e então uma revisão dos glúteos para shimmies (aqueles exercícios sentados de morrer de rir), e mais alongamento! Depois vem uma sessão de abdominais que mais parece aula de localizada de academia. Esse DVD é malhação pura!

Assim que termina a sessão de abdominais, começa uma série de exercícios para isolamento dos músculos do abdômen e depois uma pequena compensação (pequena!). Porque ela vai continuar com os exercícios abdominais! Só que dessa vez usando ondulações, de forma bem isolada, o que eu gostei.

Depois ela começa uma sessão só de movimentos de peito (laterais, cima/baixo, redondos), e quando você já está morrendo, ela muda para movimentos de encaixe e desencaixe de quadril (para ter certeza que você vai malhar TODO o abdômen :-) ). Essa é a sessão quadril do DVD, que continua com os shimmies de glúteos (ótimo para treinar a técnica dela) e outros exercícios de quadril. Os tipos de exercício são para iniciante, mas ela vai rápido e você já está morta das sessões anteriores.

E depois quando você já não aguenta mais, vem o alongamento final... que eu pessoalmente acho muito curto e suave para a malhação que foi feita. Toda a malhação dura uns 40 minutos e o alongamento final dura uns 2 minutos. Não é suficiente. Alongue mais um pouquinho.

Para finalizar, assim como os demais DVDs, tem uma apresentação em grupo, dessa vez com snujs (eu acho que essa é a melhor apresentação de todos os DVDs da Suhaila, de longe!), um discurso meio auto-ajuda sobre ser mulher, mas que é legalzinho, e uma dança em círculo.

Nos extras, assim como nos outros DVDs, tem uma sessão de exercícios de uns 10 minutos, dessa vez de descolamentos com os movimentos de quadril que ela usou no final da sessão "normal" do DVD. Novamente é uma aluna da Suhaila que apresenta essa parte, o que eu acho muito bacana. Tem também uma apresentação extra, de um trio de alunas dançando "Alf leyla wa leyla", que eu não gostei muito, mas eu sou chata com Oum Kalsoum. E por fim, mais uma dança em círculo (a Suhaila parece amar isso, tem sempre nos finais dos DVD e ainda tem sessão extra!).

Enfim, é um DVD para fazer preparação física e trabalho de base da técnica de dança do ventre. Melhor que do ir a academia!

Para vocês terem uma ideia, segue um vídeo promocional do DVD:




E essa é uma versão ao vivo da coreografia de snujs que tem no final do DVD:


E bom treino!!!

Outros DVDs da Suhaila:

JAZZ Fusion
BUNS Fusion

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Kisses from Kairo - Uma espécie em risco de extinção



Quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Por Luna do Cairo
Traduzido por Lalitha   

A Agonizante Arte da Dança do Ventre Egípcia

Bailarina egípcia de dança do ventre é uma espécie em risco de extinção. A caminho da extinção. Isso se não houver um renascimento da dança no Egito nos próximos anos. Até mesmo a Dina tem medo que isso ocorra. Porque a verdade é que, tirando a Dina, Randa, Camelia, e, mais recentemente, Aziza, tem havido um declínio de boas bailarinas egípcias no mercado. Isso é irônico, levando em consideração que a maioria das pessoas imagina que o Egito é “O Planeta da Dança do Ventre”, e que é do Egito que vieram as lendas da dança do ventre Samia Gamal, Fifi Abdo e Soheir Zaki. Além disso, há pelo menos 40 milhões de mulheres egípcias morando aqui. Você imaginaria que com esse número, esse país tão voltado para a música e a dança poderia produzir mais bailarinas. Ainda assim, a realidade é que uma combinação feia de fatores econômicos e sócio-religiosos está roubando desse país um das suas maiores realizações artísticas.

Eu me lembro quando tinha acabado de me mudar para o Cairo e estava toda animada com todas as bailarinas que eu achava que iria ver. Eu esperava encontrar centenas de mulheres naturalmente talentosas, e visitei quase todos os lugares que tinha dança do ventre. Para o meu horror, o nível da dança aqui entre as bailarinas egípcias não é tão alto quanto costumava a ser há apenas 30 anos.

E essa é a razão. Primeiro, a técnica delas normalmente é limitada, como resultado de não haver estudado a dança seriamente. Segundo, acessórios como véus, bengalas e meleias tiveram o mesmo destino dos dinossauros. Poucas bailarinas os incorporam nas suas performances hoje em dia. E se elas o fazem, é sem habilidade. Terceiro, suas roupas normalmente são baratas e reforçam a imagem negativa da dança do ventre que nós tentamos combater. Quarto, falta a elas presença de palco e profissionalismo de forma geral.

Enquanto esse tipo de nível de apresentação é desculpável nos cabarés da Rua Haram (N.T.: Haram em árabe significa “pecado”, “proibido”), é deprimente quando encontrado em hotéis de 5 estrelas. Nos cabarés, os clientes são em sua maioria homens egípcios e árabes que estão lá apenas pela carne. Entretanto, nos hotéis 5 estrelas, tanto os turistas quanto os egípcios esperam ver um show de dança do ventre de qualidade.

Intrigada com como qualquer um poderia conviver com esse evidente absurdo, eu decidi conversar com algumas bailarinas egípcias sobre o assunto. Os resultados dessas conversas foram ao mesmo tempo notáveis e tristes.

De acordo com a minha “pesquisa”, a maioria dessas bailarinas nunca praticou um dia sequer das suas vidas. Nem uma única aula de dança. Aulas são para estrangeiras e fracassadas. Uma razão mais sociologicamente interessante para a falta de prática delas, entretanto, tem como fonte a visão delas da dança do ventre. As mesmas mulheres que dançam profissionalmente acreditam que o que elas estão fazendo é vergonhoso. Isso significa que é haram, pecaminoso. E nada pode ser pecaminoso e arte ao mesmo tempo. Logo, o que é haram não merece nenhum esforço sério. No Egito, a crença de que se apresentar dançando dança do ventre é pecado é devida principalmente por conta da religião, que tem uma influência muito forte no imaginário egípcio. A religião requer uma modéstia feminina rígida e vê com maus olhos as mulheres que expõem o seu corpo publicamente.

Essa lógica também é resultado de um sistema que mantém as pessoas desnutridas intelectualmente, culturalmente, economicamente, e para muitos, literalmente. O egípcio médio está preocupado demais com como ele vai conseguir a sua próxima refeição para poder pensar em arte. Sim, a situação econômica daqui é patética assim. E é frágil e imprevisível. Um único ataque terrorista ou, talvez, uma “revolução”, e essas mulheres todas perdem seus trabalhos e ficam a mercê das suas economias. Num lugar sem garantias e sem rede de proteção social, não é lógico para as bailarinas que elas gastem nada dos seus ganhos com algo tão frívolo como uma aula de dança. Ao invés disso, elas investem seu dinheiro em ativos, principalmente apartamentos e carros, e na educação dos seus filhos. Isso só mostra como a arte não pode florescer numa sociedade que não tenha atingido um padrão mínimo de bem-estar econômico.

Mas as coisas não foram sempre tão ruins. Apenas 30 anos atrás, o negócio da dança do ventre está indo de vento em popa, relativamente falando. Nessa época o Egito tinha um fluxo confiável de turistas árabes vindos do Golfo, que vinham para aproveitar dos frutos proibidos nas suas próprias sociedades puritanas. A presença deles e dos petrodólares abasteciam a vida noturna egípcia, na qual a dança do ventre tinha o papel principal. Eles, assim como egípcios ricos, eram os maiores patronos das bailarinas mais famosas. Eram eles que faziam os contratos para dançar nos casamentos, e outras festividades privadas. Entretanto, tudo isso começou a ir ladeira abaixo nos anos 90. Com o final da primeira Guerra do Golfo, muitos cidadãos do Kuwait e sauditas voltaram para casa para reconstruir os seus países. Outros pararam de vir ao Egito por conta do assédio que sofriam de fundamentalistas religiosos que tentavam dissuadi-los de entrar nos cabarés. Basicamente, a principal fonte da indústria de entretenimento secou. E assim acabou a inovação artística.

Mas com a economia tão mal como está agora, nem mesmo a crença de que dançar dança do ventre é haram consegue impedir que as mulheres se sustentem como bailarinas. Se algo mudou, foi que a dança do ventre se tornou mais atraente como profissão. Isso porque é lucrativa e não requer nenhum tipo de pré-requisito. O mínimo que uma bailarina ganha por noite num cabaré é 100 libras egípcias (aproximadamente 17 dólares), o que é uma remuneração decente no Egito, onde mais da metade da população vive com menos de 2 dólares por dia. Isso assumindo que ela dança em apenas um cabaré e não ganha gorjetas. O que normalmente não é o caso. A maioria das bailarinas trabalha em mais de um lugar por noite e ganham gorjetas, então elas ganham muito mais do que 100 libras egípcias. Realmente, contando salário e gorjetas, uma bailarina pode ganhar milhares de libras numa noite. A maioria dos egípcios não ganha isso nem num ano! Então é compreensível que, do ponto de vista financeiro, a dança do ventre é um bom emprego, por mais vergonhoso que possa ser.

Outro fator que afeta negativamente o cenário da dança por aqui é a mudança na preferência dos jovens egípcios. Apesar da dança do ventre ter sido uma forma de entretenimento muito popular até pouco tempo atrás, discotecas de estilo ocidental, álcool e drogas se tornaram a escolha preferida de diversão hoje em dia. Mas o maior rival da dança de longe é o DJ. Comparado à dança do ventre, contratar um DJ é fácil e barato. E não vem com todo o estigma de se contratar uma bailarina de dança do ventre.

Se você nunca esteve no Egito antes, ou esteve, mas não está familiarizada com o cenário da dança, você provavelmente vai achar que estou mentindo ou exagerando a situação. Mas eu não estou. Entretanto, eu acho que é o tipo de coisa que é ver para crer.

É contra-intuitivo que aqui, no berço da dança do ventre, essa linda arte está morrendo. Falando de morte, a bailarina favorita da maioria dos egípcios é Samia Gamal, que está, bem, morta. E com relação às bailarinas de hoje, geralmente os egípcios não gostam delas e nem mesmo sabem quem são – com exceção da Dina, é claro. Mas esse é o estado atual da arte. O seu desenvolvimento e até mesmo sobrevivência depende de reformas sociais, econômicas, e políticas radicais no Egito. Atitudes mais liberais com relação à arte, casadas com uma economia revigorada serão necessárias para reviver os dias de glória dessa dança.

Para outros pontos de vista sobre esse assunto, vejam os seguintes links (em inglês):


terça-feira, 21 de agosto de 2012

Diário de Viagem - TURQUIA - 2° dia - Conhecendo Istambul


Depois de uma noite infernal com o ar-condicionado maluco (o termostato simplesmente não funcionava, e o bicho passou a noite inteira ligando e desligando, só que ele fazia isso de forma muito escandalosa), acordamos mais tarde do que o previsto, o que ainda assim era bem cedo. Eu levantei primeiro, porque como sou mais lenta no banho e demoro mais para me arrumar, então é mais lógico que seja assim.

Depois de nos arrumarmos descemos para o café da manhã, só para descobrir que o lugar do café ficava na cobertura :-) Mas que café da manhã diferente! Além de suco de cereja (que obviamente experimentamos, mas nos arrependemos porque mais parece um xarope de tão doce), tinha salada (com direito a tomate, pepino, alface, azeitonas e hortelã), diversos tipos de queijo (todos branquinhos, com jeitão saudável, inclusive o denominado queijo amarelo era bem branquelo), pães diversos, iogurtes (com direito a diversas geléias para misturar), cereais (alguns não dava nem para reconhecer), café, leite, chá e bolos (ah, sim, entre os "bolos" tinha helwa, que é um doce maravilhoso feito de gergelim, mas que não é bolo).

Primeiro café da manhã da viagem!

Comemos até dizer chega, passamos no quarto para escovar os dentes e descemos novamente para a recepção, onde tentamos telefonar para a agência de viagens para confirmar o horário do nosso tour no dia seguinte (quem disse que eu confiava no cara que falava espanhol tosco?), mas infelizmente a agência ainda estava fechada e não conseguimos falar com ninguém. Mas enquanto o Caike resolvia essa história com o telefone eu fui numa vendinha ao lado do hotel (uma das tais lojas de souvenir/mercearia) para comprar nosso suprimento de água para o dia. Dica: comprem garrafas de água nessas vendinhas perto dos hotéis, é mais barato do que nos restaurantes ou nos camelôs, e, claro, muito mais baratas do que no frigobar, só não são mais baratas do que no supermercado, mas supermercados não ficam em qualquer esquina. O vendedor foi logo perguntando de onde eu era, porque ele achava que eu tinha cara de turca (sério???), eu respondi que era brasileira e aproveitei para perguntar para ele como se dizia "obrigada" em turco: teşekkür ederim. Complicado. E sim, tem cedilha no "s", e quando isso acontece o som é de "x" (até que aprendi alguma coisa, viu?).Mas o vendedor foi muito simpático e no final eu consegui agradecer em turco. :-)

Saímos do hotel e resolvemos pegar um taxi na praça Taksim (na rua do hotel não passava taxi, daí teríamos de chamar um... ficamos com medo de ter outro preço e não ser taxímetro -- medo comprovado mais tarde, mais ainda vamos chegar lá), e no caminho vimos uma loja de câmbio aberta, pois estávamos atrasados e já eram 9h, hora que eu queria já estar na porta do Palácio Topkapi, mas enfim. Dinheiro trocado, pegamos um TAKSI (fácil, né?) e pedimos para irmos para o Palácio. O motorista era um turco muito simpático que não falava nem uma palavra de inglês, só turco e alemão (juro que era alemão a segunda língua dele, achei muito bizarro). Ainda bem que alemão tem lá suas semelhanças com o inglês porque conseguimos manter os rudimentos de uma conversa, com ele perguntando de onde éramos (com a esperada resposta falando de futebol... mas que surpreendeu porque ao invés de falar sobre os craques da nossa seleção, o motorista começou a desfiar a lista de jogadores brasileiros que atualmente jogam na Turquia, e, claro, precisei de uma explicação do Caike para entender isso), a gente perguntando por qual ponte estávamos passando e uma tentativa absolutamente frustrada do motorista de nos explicar as ruínas pelas quais passamos (o caminho que o motorista fez passava pela orla do Chifre de Ouro e do Bósforo, margeando o palácio Topkapi e de onde ainda se vê um grande conjunto de antigas muralhas do palácio, algumas partes dessa muralha datam no Império Bizantino - nada como o google :-) ).

Finalmente chegamos em Sultanahmet, o bairro mais turístico de Istambul, onde fica a Mesquita Azul, a Hagia Sofia e o Palácio Topkapi. Como pedimos para ele nos deixar no palácio quando saímos do taksi achei que estávamos entre a Hagia Sofia e o Palácio, mas depois entendi que na verdade estávamos entre as duas mesquitas (Azul e Sofia), e, gente, que visão! Mas, esse dia era sexta-feira, a primeira sexta-feira do Ramadã, e eu não queria visitar mesquitas nessas condições (imagina como elas estariam no dia mais sagrado da semana durante o mês mais sagrado do ano?), portanto nossa programação só incluía museus.

Mesquita Azul

Hagia Sofia
Pegamos nosso lindo mapa arrancado do guia de viagens e, depois de finalmente nos localizarmos, pegamos uma ruazinha estreita sugerida pelo guia, e que coisa mais bucólica! Era uma ruazinha chamada Soğukçeşme Sokağı, cheia de casas de madeira, de no máximo 3 andares, cada uma de uma cor diferente! Segundo o guia, são casas antigas do século XIX e XX, e em uma delas vimos uma placa indicando que a Rainha Sofia da Espanha ficou hospedada lá, olha que chique! Depois descobri que parte dessas casas funciona hoje como hotel, o que faz sentido. Outra vantagem dessa rua é uma visão bem diferente da Hagia Sofia, e uma porta muito diferente dela perto da Fonte de Ahmed 3° (que é muito bonita e que estava cercada de japoneses. Aliás, os japoneses estão em todo canto! E eles são muito mal educados quando não estão no Japão).

Soğukçeşme Sokağı

Porta diferente da Hagia Sofia

Fonte de Ahmed 3° com os japoneses
Chegamos então à Porta Imperial, a primeira porta para o Palácio Topkapi, que fica em frente a Fonte (que a título de informação, data do século XVIII). Passando dessa primeira porta (onde não se cobra entrada), se tem acesso a um imenso jardim, onde fica à esquerda: a Hagia Irene, a Casa da Moeda Imperial, o Museu Arqueológico e do Antigo Oriente, o Pavilhão Çinili e o Parque Gülhane. Do lado direito encontramos a bilheteria do Palácio, uma lojinha de souvenires do Palácio, a Fonte do Carrasco (onde, dizem, o carrasco limpava as mãos e a espada depois do "serviço") e no final à direita fica a entrada do Palácio Topkapi. Como vocês podem perceber, o Palácio faz parte de uma imensa estrutura, que foi modificada diversas vezes ao longo dos 4 séculos em que foi usada como palácio imperial pelos sultões. E isso é muito perceptível por dentro, pois dá para ver que, por exemplo, metade de uma parede é de um jeito e a outra metade é de outro. Depois, os sultões aparentemente se cansaram daquele castelo velho e fora de moda (a moda era Versalhes!) e construíram o Palácio de Dolmabahçe, mas enfim... gente rica de verdade é outra coisa.
Porta Imperial!
Dentro do primeiro pátio, resolvemos começar pela esquerda, porque queríamos passar primeiro na Hagia Irene, a única igreja bizantina que nunca foi usada como mesquita (mas foi usada como depósito de armas... grande coisa, o Pártenon de Atenas também foi -- o ser humano é muito sem noção), mas infelizmente ela estava fechada, então fomos direto para a bilheteria, que é arrumada de uma forma que na saída, já com o seu ingresso, você é obrigado a passar por um cara com uma máquina fotográfica e dois homens vestidos como guerreiros otomanos. Já sabem pra quê, né? Você chega lá, eles fazem umas 3 poses com você, com a entrada do Palácio ao fundo, e incluindo as versões "os turistas degolados" e "os turistas que vencem os otomanos". Bonitinho, mas eles obviamente não te deixam usar a sua máquina e você ganha um número para ver as suas fotos quando sair do Palácio e decidir se vai comprá-las ou não. :-P
Hagia Irene
A segunda porta, a do Palácio mesmo, parece um mini-castelo, com duas torres bem típicas de castelos europeus, e ela dá para um segundo pátio com um belo jardim. Esse segundo pátio é menor do que o primeiro, e como o Harem (que tem uma bilhereria própria separada) ficava à esquerda, resolvemos ver o palácio dando a volta e começando pela direita, para deixar o Harem para o final. Com sorte chegaríamos no restaurante do último pátio na hora do almoço, já que já era 10h da manhã.

Porta do Palácio Topkapi
Entrando pela direita nesse segundo pátio temos 2 exposições diferentes, uma de carruagens e outra, que fica dentro das cozinhas, de cerâmica, cristais e pratarias. Infelizmente as cozinhas estavam em reforma :-( mas as carruagens foram interessantes, apesar delas copiarem o estilo europeu e serem todas "modernas" (para um palácio que começou a ser construído em 1459 ter uma exposição de carruagens dos séculos XVIII e XIX é querer mostrar seu acervo mais moderno mesmo rsrsrs). Mas pelo menos pudemos admirar os achados arqueológicos da área do Palácio, que estão dispostos pelo jardim no segundo pátio.

Segundo jardim do Palácio
Ah, muito importante parar e explicar rapidinho isso, o Palácio Topkapi é enorme, tipo gigantesco mesmo, e tem salas muito bonitas e outras não tão ricamente decoradas. Essas últimas são usadas para exposições fixas e temporárias do acervo do Palácio. Conforme eu for descrevendo nosso passeio, falarei de cada exposição.

Chegando no final desse segundo jardim, temos a famosa Porta da Felicidade (não é lindo esse nome?). Na frente dessa porta tem um pequeno marco no chão, bem pequeno mesmo (tipo, se não tivesse a proteção em volta qualquer um passaria por cima sem nem olhar), cercado por uma proteção mixuruca, que é onde se fixava o estandarte de Maomé em ocasiões especiais (como a guerra, por exemplo). A Porta dá para o terceiro pátio, que já era considerado exclusivo do uso do sultão e de sua família, e era usado em algumas ocasiões recebendo a corte, como as coroações. Mas antes de você poder ver o jardim, há uma porta para um pequeno pavilhão que é a sala do trono, ou sala das audiências, muito bonita, e que, claro, tem um trono baixinho e extremamente largo e fundo (eram sultões, não reis, portanto eles ficavam recostados naquelas imensas almofadas... e dá para visualizar isso direitinho). Saindo desse pavilhão, finalmente podemos ver o terceiro jardim, com a biblioteca de Ahmed 3° no centro, e mais um monte de salas com exposições em volta.

Porta da Felicidade, dá pra reparar no cercadinho no chão?
Para não nos confundirmos, continuamos no esquema: círculo começando pela direita, e, portanto, começamos pela exposição de trajes imperiais. Algumas considerações sobre essa linda exposição: os otomanos gostavam de roupas absurdamente folgadas, porque as peças expostas são enormes!!! E não há uma diferença clara entre os cortes das roupas masculinas e femininas (não para mim pelo menos). Os padrões são todos belíssimos e alguns incluem tulipas (mais tarde aprendi que as tulipas são originárias da Turquia! E que há alguns anos os turcos começaram a replantar tulipas em Istambul na época da primavera, fazendo um grande festival na cidade, isso depois de séculos sem nenhuma tulipazinha ser vista na Turquia -- aparentemente as tulipas foram extintas por lá porque só o sultão podia tê-las e aconteceu alguma tragédia que todos os bulbos que eles tinham foram destruídos, ainda bem que a Holanda tinha se apaixonado por essas flores e elas não foram extintas de verdade). Mas as roupas de baixo são as mais interessantes! Aparentemente os otomanos eram muito superticiosos, e as suas roupas de baixo são cobertas por fórmulas mágicas de proteção, incluindo quadrados mágicos (aqueles cheios de números dentro), passagens do corão e formas geométricas. O mais legal é que cada roupa dessa é extremamente diferente da outra... será que eram baseadas no mapa astral dos seus donos e por isso cada um tinha uma fórmula mágica própria?

A exposição seguinte era a do Tesouro Imperial! Ah, que coisa mais linda! Amei! Claro que o diamante de, sei lá, uns 20 quilates, ficaria mais bonito na minha mochila do que naquela vitrine, mas as peças expostas eram todas muito lindas... fiquei especialmente espantada com as caixas de escrever feitas de pedras preciosas, uns pingentes gigantescos que eu não sei como alguém conseguiu usar, e alguns exemplares de adornos de turbantes (parecia que os meus livros de história se tornavam realidade na minha frente!). E tudo feito com cada detalhe... realmente espantoso.

A próxima exposição descrita no nosso guia era a de miniaturas e de manuscritos, mas juro que não encontramos a entrada. Provavelmente também estava fechada :-(

Então resolvemos dar uma volta pelo jardim e visitar a biblioteca de Ahmed 3°, um pequeno pavilhão bem no centro do jardim, com uma fonte absurda entre as duas escadas que dão acesso a entrada. Absurda porque além dela ter 3 torneiras  no nível do jardim (já descobri que o lance dos turcos é ter fonte, eles adoram uma fonte... tem em cada esquina, e uma torneira só é considerado pouco, sempre tem mais), tinha mais uma no nível da biblioteca, no alto das escadas. Exagero, né? Mas a biblioteca é linda! Além de ser ricamente decorada, ela é cheia de lugares para se sentar para ler... tudo no chão, à moda árabe mesmo, e com almofadões... adoraria passar o tempo ali naquelas almofadas lendo...

Biblioteca de Ahmed 3°

A fonte na entrada da biblioteca

O outro lado da fonte, em cima da escada

Dentro da biblioteca!
Dali fomos para o lado esquerdo do jardim, para procurar a exposição de relógios (já não tínhamos achado uma exposição, começamos a achar que o problema podia ser nosso), e gente, fiquei emocionada, porque lembrei do meu pai, que era aficionado por relógios. E nessa exposição tinha todo tipo de relógio que você pode imaginar... tinha até um com o ciclo da lua e dos planetas! E tinha um em forma de pistola que eu tenho certeza que vi num livro de relógios bizarros que eu dei para o meu pai. Enfim, vale a pena a visita.

Ao lado dessa exposição tinha a única sala com uma fila na porta: a sala que guarda as relíquias de Maomé. Você acha que só os cristãos têm pedaços da cruz o suficiente para fazer uma caravela? Precisa ver os muçulmanos com as barbas do profeta! Sim, finalmente entendi de onde vem essa expressão. Ela é literal mesmo! Mas, a exposição é muito interessante, além de ter roupas que foram de Maomé, e utensílios de seus, ah, seria o equivalente aos apóstolos, incluindo suas armas (sim!!! armas!!!), a exposição tem exemplares das barbas do profeta (claro, não podia faltar!) e relíquias da Caaba (como as suas chaves, portas antigas e calhas de chuva - de ouro!!!!). A quantidade de muçulmanos e mulheres de véu nessa sala é imensa! E eles rezam e passam a mão em algumas peças... e as mulheres cheiram as barbas do profeta. Sério. Elas cheiram mesmo! Enfim, cada povo com a sua esquisitice.

Depois disso, finalmente fomos para o quarto e último pátio do Palácio, que é onde o sultão passava o dia fora do harem. Esse pátio é composto de diversos pavilhões, todos lindamente decorados, e jardins entre eles (essa parte do palácio não tem o formato cercado de pavilhões dos pátios anteriores). Ali ficam dois restaurantes, um mais chique e outro ao ar livre, com uma linda vista para o Bósforo, o pavilhão das circuncisões (descobri que os muçulmanos fazem da circuncisão um ritual de iniciação no islamismo, e ela é feita quando o menino tem uns 7 anos de idade! fiquei com pena), o pavilhão Bagdá (construído em 1639 para comemorar a tomada de Bagdá) e o pavilhão Iftariey, que tem uma vista linda. Essa parte do Palácio não tem exposições, só lindos salões decorados para visitar, e é ótimo sentar num dos banquinhos do jardim para tomar uma água e descansar os pés.

Um dos pavilhões para ser visitado!

Jardim com outro pavilhão.
Já era hora do almoço, mas não estávamos com fome, e, na verdade, estávamos preocupados com a hora, porque ainda queríamos visitar o Museu Arqueológico e já era 13h. Resolvemos começar a voltar e ir direto para o que ainda não tínhamos visto, lá no segundo pátio.

Voltando ao segundo pátio, fomos ver o Divan (não, não é um sofá usado para psicanálise, é o nome do pavilhão onde o conselho do estado se reunia com o sultão - que espertamente ficava separado dos seus vizires por detrás de uma treliça, de forma que ninguém poderia ver suas reações ao que era dito na sala), que é uma sala especialmente bonita e muito dourada. Teoricamente a exposição de armas deveria ficar ao lado do Divan, mas também não vimos a entrada.

Entrada do Divan

Treliça de onde o sultão observava as reuniões
Saindo do Divan, compramos nossos ingressos para o Harem (mais baratos que os do Palácio pelo menos) e fomos visitar os apartamentos individuais da família do sultão. É nessa área do palácio que ficam os quartos das concubinas, da sultana, dos príncipes e de alguns dos sultões (alguns preferiam ficar no quarto pátio). Tudo ricamente decorado, e bem fechado. A única vista mais aberta que vimos foi para um pátio interno com uma piscina de pedra gigante (acho que seria equivalente a uma piscina olímpica). Essa parte do palácio é onde fica mais visível as mudanças estruturais feitas através do tempo, onde vemos muito claramente as adições feitas de quartos e estruturas, porque simplesmente nada combina com nada. As janelas são diferentes umas das outras, o material usado para fazer as paredes são diferentes... as alturas e tamanhos das coisas variam. Uma loucura.

Dentro do Harem

Repare como cada pedaço da construção é diferente

Gamei nessa foto... a luz é natural, vinda de aberturas no teto!
Saímos do Harem cansados e, finalmente, com fome. Mas como não queríamos ir de novo até o restaurante dentro do Palácio resolvemos comer na saída, já a caminho do Museu. E na saída, bem a nossa direita, tinha uma lanchonete vazia. Fomos até lá e comemos sanduíches. O Caike pediu um suco Cappi (o suco DelValle deles) e eu resolvi experimentar um suco de flor de papoula. Era até interessante, mas extremamente doce. Matou a vontade de sobremesa, mas me deixou com sede.

Nosso almoço/lanche!
A esse ponto já era quase 15h da tarde, e já estávamos mortos por conta do jetlag, mas fomos bravamente até o Museu Arqueológico, onde descobrimos que ficava junto com o Museu do Antigo Oriente (ótimo, dois por um!). Na entrada havia uma placa com letras garrafais "AQUI NÃO É O TOPKAPI", o que eu achei muito engraçado, e honesto. O mesmo aviso se encontrava na bilheteria, para caso o turista distraído ainda não tivesse percebido. Compramos nossas entradas (ainda mais baratas que as do Harem) e entramos num grande pátio cercado de prédios imensos. No jardim, à direita, tinha uma lanchonete, cujas mesas ficavam entre diversas peças arqueológicas com jeitão grego-romano. E antes desse jardim ficava o menor prédio do complexo, que era o Museu do Antigo Oriente, e que visitamos primeiro.

O caminho para os Museus

Os achados arqueológicos expostos ao ar livre... bem amostra grátis com direito a poder tocar, sentar em cima...
Me senti uma criança num parque de diversões: tanta coisa linda para ver! E incluía pedaços do portão de Ishtar da Babilônia, que eu ADORO! E também o tratado de Kadesh (o primeiro tratado de paz da história! feito entre os Egípcios e os Hititas, há uma descrição da batalha que levou a esse tratado nos livros da série Ramsés do Christian Jacq, detalhes sobre essa série aqui), e muitas outras coisas todas lindas! O único problema é que o prédio é quente. E não tem ar condicionado. E para variar, dá um certo nervoso ver tudo aquilo exposto sem nenhuma proteção.

Saindo desse Museu, fomos para o próximo pavilhão, um prédio baixo todo branquinho e com uma entrada deslumbrante de azulejos. Adivinha o que tinha dentro? Mais azulejos e porcelanas! Uma exposição muito bonita e colorida. Mas novamente o prédio não tinha ar condicionado e era quente... algumas salas mais do que outras, por conta das janelas.

A entrada maravilhosa de mosaicos do pavilhão de cerâmicas

Essa era uma cópia de um quadro bastante conhecido que estava...

Em frente ao lugar onde ele foi pintado!!! O.O
Finalmente fomos para o prédio "novo" do museu, que tem 3 andares, além do térreo. Confesso que conforme fomos andando por esse prédio, minha atenção foi diminuindo, por conta tanto do cansaço quanto do calor, e quando finalmente chegamos no último andar, tudo o que víamos era "pedra", "vaso" e "tralha". Certamente é um museu para visitar numa época mais amena do ano, e com um dia inteiro só para ele. Nós estávamos tão cansados que teve uma hora que o Caike pediu para sentar e cochilar por 5 minutos (ele já estava dormindo em pé, coitado, e ele ainda por cima não é tão resistente ao calor como eu).

Para piorar, o caminho da exposição não é claro, e o prédio é um grande labirinto, em outras palavras, nos perdemos diversas vezes, e quase desistimos de ir ao terceiro andar quando descobrimos que ele existia. Mas fomos mesmo assim. E valeu uma vista no mínimo inusitada da parte de trás do prédio, onde se pode ver um conjunto imenso de ruínas cobertos por trepadeiras. Não sei que ruínas eram, mas eram bonitas.

Ruínas não identificadas
Apesar do cansaço, consegui notar que o museu tem uma linda coleção de sarcófagos romanos, muitas estátuas de estilo clássico e dentro dele há sessões de achados arqueológicos encontrados por toda Istambul e também de toda Anatólia (parte asiática da Turquia). Com mais tempo e disposição a visita teria sido mais proveitosa, mas mesmo assim o museu deixou uma impressão muito boa. Adoramos a visita.

Nesse ponto estávamos exaustos, e tudo o que queríamos era voltar para o hotel. Mas na saída do museu, depois de passar rapidamente pela entrada do Parque Gülhane, eu cismei que queria terminar de ver a área, e arrastei o Caike para a Mesquita de Zeynep (uma princesa otomana, muito devota, que mandou construir uma Mesquita para si mesma em 1769), que, comparada ao que vimos depois era muito sem graça, além de bem pequena. Mas foi a primeira mesquita que visitamos, então vale a pena mencionar. Como não estava no horário de nenhuma oração, a visita foi super tranquila, nem precisei cobrir a cabeça para entrar.

Parque Gülhane
Depois eu cismei em entrar numa galeria de arte, o que foi bom, porque ela era climatizada! E vimos algumas obras muito interessantes, e todas extremamente caras. Mas conversando com a vendedora, descobrimos que estávamos do lado de uma escola de artes, e novamente arrastei o Caike comigo. E ainda bem que fiz isso, pois descobrimos um lugar lindo! Construída em 1559 como uma medresse (escola muçulmana) por um eunuco, hoje o Pátio Cafer Aga é uma escola de artes, com um lindo café no centro, onde além de se vender artesanato típico turco, você poder fazer aula de caligrafia, música, desenho, pintura e porcelana.

A entrada do Pátio Cafer Aga
Despencamos numa das mesas do café e o Caike pediu um café turco, enquanto eu fiz um repeteco no Ayran. Aproveitei para tirar algumas fotos desse lugar bucólico e olhar as lojinhas, todas muito lindas e cheias de peças interessantes. Finalmente refeitos do Museu Arqueológico, resolvemos voltar ao hotel, mas na saída da escola paramos numa loja belíssima de cerâmicas, onde eu aumentei a minha coleção de gatos e o Caike bateu o maior papo com o vendedor.

Para ter uma ideia do café do Cafer Aga
Agora carregados e cansados, passamos pelo Pavilhão Alay e pela Porta Sublime (uma porta realmente muito bonita de um prédio do governo) e fomos para a estação de bonde Gülhane. Enquanto esperávamos pela "composição", avaliamos o nosso mapa, e chegamos a conclusão que a estação de Findikili era a mais próxima da praça Taksim. Saltamos todos felizes e de mapinha na mão. E nos demos mal, muito mal. Não havíamos reparado que a tal Praça fica num ponto extremamente alto da parte nova da cidade (dá pra ver o mar, inclusive, mas eu só reparei nisso depois), e quando entramos na rua indicada pelo mapa demos de cara com uma ladeira dessas que desanima só de olhar.

A Porta Sublime!
Estávamos cansados e com sono, mas pegamos nossas últimas energias e encaramos a subida. E a distância que parecia uma caminhadinha de 10 minutos virou um passeio de quase 1 hora. Claro que parte desse tempo foi dedicado a única coisa interessante que tinha nessa rua: um supermercado. Não sei quanto a vocês, mas eu acho extremamente interessante visitar supermercados estrangeiros. E o supermercado turco não foi diferente! Nele encontramos diversas marcas de ayran e de queijos de nomes impronunciáveis na sessão de frios. Descobri que o pistache é o amendoim turco: tem de tudo quanto é marca, é baratinho, e é uma das castanhas mais usadas nos chocolates (com direito a chocolate ao leite, amargo e com altos percentuais de cacau, nham!) e nos biscoitos. Na sessão de sopas prontas, o mais diferente que vimos foi uma sopa sabor kofte (aquelas almôndegas achatadinhas divinas de carneiro). Acabei comprando pistaches. E na fila do caixa, na minha frente tinha brasileiros! Somos as novas baratas do turismo, estamos em todo canto!

Saindo do pequeno paraíso, voltamos a enfrentar a ladeira, e chegamos exaustos no hotel. Mas daí já estávamos com fome! Claro, depois de tanto exercício, né? Então esvaziamos as mochilas, telefonamos novamente para a agência de turismo (que confirmou apenas o horário da excursão do dia seguinte, ainda não havia previsão de mais nenhum horário... mas pelo menos o cara do espanhol tosco estava certo) e saímos para jantar.

Na volta ao hotel, o Caike tinha visto um restaurante com um nome engraçado, onde ele cismou que queria jantar: Zeugma (uma figura de linguagem! O Caike tem uma memória e tanto para algumas coisas muito estranhas...). Então foi para lá que nos dirigimos, e no caminho tivemos que nos livrar de mais um cara querendo nos levar para algum restaurante desconhecido... mas pelo menos dessa vez o cara realmente trabalhava no restaurante, veio com o menu e tudo! E tentou de tudo para nos convencer, ficava na nossa frente mostrando o cardápio (cheio de fotos dos pratos, como no Japão), prometeu que se nós não gostássemos da carne não precisávamos pagar... enfim, foi muito insistente. Mas nós queríamos figura de linguagem!!!

Finalmente chegamos no tal restaurante, que tinha um cardápio muito parecido com o que o tal cara queria nos levar, diga-se de passagem, e pedimos um espeto de cordeiro e kebab (que era igual a nossa kafta na aparência, só que mais gostosa). Para beber pedimos chá, o Caike de maçã (eu já tinha ouvido falar bem desse chá) e eu um turco (que na verdade era chá preto, mas estava muito bom). Eu ainda ganhei um chá extra, porque quando estava no finalzinho o garçom tentou levar minha xícara embora e eu a pedi de volta, daí ele disse que retornaria com uma nova por conta da casa :-) De sobremesa eu pedi baklava (um doce que tem muito por aqui também, que é um folheado com castanhas e mel por cima), mas não consegui comer tudo porque vinham muitos pedaços! E olha que a porção era individual!

Meu belo jantar com chá turco!
Na volta ao hotel ainda parei numa loja linda de bijoux feitas inteiramente de metal... umas coisas muito diferentes e interessantes... e me abasteci para as próximas temporadas de dança! Chegando no hotel ainda gastamos o que tínhamos de energia (que era bem pouca) para testar a internet do lobby, que era surpreendentemente boa, apesar de bloquear alguns sites, como blogs. E depois fomos dormir, porque o dia seguinte começaria muito mais cedo, e não poderíamos nos atrasar.

sexta-feira, 17 de agosto de 2012

Kisses from Kairo - Uma possibilidade inteiramente possível



Terça-feira, 29 de novembro de 2011

Por Luna do Cairo
Traduzido por Lalitha  

Até agora eu me abstive de me envolver em discussões políticas sobre o Egito. Principalmente porque assistir o desenrolar dessa assim chamada revolução com os meus próprios olhos causa grandes emoções. Um ano depois e com as eleições atualmente em curso, eu não sei quanto tempo mais eu vou agüentar ficar em silêncio sem explodir. Quero dizer, eu não tirei o meu diploma em políticas do Oriente Médio para nada. :)

Quando os egípcios tomaram pela primeira vez as ruas para derrubar o ditador Hosni Mubarak, no dia 25 de janeiro de 2011, eu não pude deixar de ser levada por todo o fervor revolucionário. E sem dúvida, desde que me mudei para cá há 3 anos, eu venho dizendo que o Egito é o lugar perfeito para uma revolução. A vida para o egípcio médio se tornou insuportável. A pobreza é extrema, o preço dos alimentos é extremamente alto, a corrupção e a ineficiência do estado não conhecem limites, e as taxas de desemprego superam os 50%. Eu previ que haveria violência antes da eleição presidencial seguinte, que seria em novembro, e para a qual Mubarak intencionava inscrever o seu filho. Mas, dado ao empurrãozinho de inspiração que o Egito recebeu da Tunísia, tudo aconteceu antes do que eu esperava.

Agora que Mubarak foi embora e a lua de mel acabou, algumas realidades desagradáveis estão começando a vir à tona. Todas as diferentes facções que se juntaram para fazer esse coup d’ètat agora se dividiram. São secularistas, socialistas, nacionalistas, e (os meus favoritos) islamistas, e estão todos se digladiando pelos corações e mentes dos egípcios. Apesar de todos eles falarem em termos de democracia, justiça social, direitos humanos e liberdade, cada facção entende esses conceitos de forma radicalmente diferente. E cada um visualiza um Egito radicalmente diferente.

E é por isso que eu tenho duas visões sobre essa revolução. A americana em mim está radiante de alegria com a retórica de que finalmente a democracia chegou ao Oriente Médio, e que as pessoas estão dispostas a morrer por isso. Eu fico toda emocionada quando vejo todo o mundo, desde jovens adultos até idosas de 80 anos cobertas com véu, fazendo fila para votar. Minha americana interior, entretanto, leva um choque de realidade com a minha egípcia interior barra realista, que duvida da sabedoria de se implementar a democracia num lugar como o Egito. E por diversas boas razões. A mais importante é que isso vai certamente abrir as portas para os islamistas tomarem o poder. Se não for mais cedo, mais tarde.

A maioria de nós hesita diante da idéia de um Egito islâmico. Muitos negam que isso possa vir a acontecer. A minha pergunta é, por que não? Só porque não seria do interesse do Egito? Também não era do interesse do Irã. Só porque achamos a idéia dolorosa demais? Nossos sentimentos não negam a realidade. E a realidade é que a Irmandade Muçulmana e outros islamistas encontraram solo fértil no povo egípcio, que tem se tornado mais conservador a cada dia que passa.

Isso sem mencionar que a Irmandade é poderosa, tem influência, é organizada, bem financiada, e séria. Apesar de ter o poder político negado a ela desde a sua fundação, a Irmandade tem compensado largamente isso provendo soluções para problemas sociais em áreas pobres. Ela criou uma intensa rede de educação, saúde e cursos profissionalizantes. Também providenciou transporte segregado para as mulheres, para mitigar o assédio em público. É dona de mais de 22 hospitais e tem escolas em todas as áreas administrativas egípcias, e montou centros de atendimento para viúvas e órfãos. Ela permite até mesmo que mulheres grávidas dêem a luz nos seus hospitais, por uma fração do que custaria em outras clínicas. E ao entrar em áreas onde o governo falhou, o Islamismo ganhou uma credibilidade há muito perdida pelos regimes “secularistas” nos últimos 60 anos.

Mesmo que a Irmandade não oferecesse todo tipo de serviço social, ainda assim ela tem mais credibilidade que o secularismo. Isso porque na psique política egípcia, o secularismo tem sido associado e culpado pela corrupção que define as eras Nasser, Sadat e Mubarak – (apesar de que na realidade eles nunca foram tão seculares quanto dizem). Essa percepção de fracasso do secularismo deu coragem aos islamistas para denunciá-lo com veemência.

Outra coisa que nós precisamos considerar é a distribuição demográfica do Egito. Os egípcios são, em sua maioria, religiosos. Eles levam os seus profetas e livros sagrados muito a sério. Aproximadamente 90% são muçulmanos sunitas. E por mais que muitos sejam o que eu gosto de chamar de “muçulmanos relapsos”, a grande maioria acredita que é religiosa. Ou pelo menos aspira a ser. A religião ainda é o maior ponto de referência aqui. Ela direciona como os egípcios devem se vestir, pensar, agir, ver o mundo e até mesmo como devem entender a história – não inteiramente, mas muito mais do que na metade secularista do mundo. Dado que o Egito é tão religioso, faz sentido que as idéias da Irmandade repercutam em tantos egípcios. Por exemplo, eles querem que a nova constituição afirme que o Egito é um estado islâmico. Para a maioria dos egípcios que já se vêem como muçulmanos devotos, isso é mais uma afirmação da realidade do que uma inovação na política egípcia. E para eles não é nada para se ter medo. São os liberais que não querem que o Egito seja um estado islâmico, e isso para o egípcio médio parece ser muito suspeito.

Além de ser religioso, o Egito tem muito baixa escolaridade. As estatísticas oficiais egípcias dizem que a taxa de alfabetização é de 70%, mas fontes não oficiais dizem que está mais próxima de 50%. Ainda assim 50 milhões de egípcios estão registrados para votar! Não que eu acredite que todos os 50 milhões irão votar nas eleições – um grande segmento da população ainda é apático politicamente falando. Mas a taxa de comparecimento à votação bateu um nível recorde nos últimos dois dias. Especialmente por causa do novo entusiasmo egípcio com a política, mas também porque o governo está forçando as pessoas a votarem, ameaçando aqueles que não comparecerem com uma multa de 500 libras e prisão. Votação forçada! Que tal isso numa democracia? :)

E é por isso que é difícil, para mim, imaginar que um contingente suficiente de egípcios vai tomar uma decisão informada nas eleições. Ninguém em nenhum lugar do mundo faz isso, mas aqui é um pouco pior porque têm mais de 6000 candidatos e 400 partidos para escolher! Ninguém sabe quem são esses candidatos. E ninguém conhece em quem está votando. Isso é um problema sério, porque as pessoas acabam por votar nos únicos 2 partidos que eles já ouviram falar, que são a Irmandade Muçulmana e os Salafitas. Mesmo que eles não concordem com as suas plataformas políticas. É simplesmente uma questão de reconhecimento.

E foi exatamente isso que aconteceu com pelo menos 2 egípcios que eu conheço. Dois membros da minha banda para ser mais exata. Músicos. Artistas. O tipo de pessoa que provavelmente mais vai sofrer sob o comando islâmico. Eles admitiram terem votado no Partido da Liberdade e da Justiça – o partido da Irmandade Muçulmana – simplesmente porque eles não conheciam nenhum dos outros candidatos ou partidos. E eles admitiram terem votado porque não queriam pagar a multa e ir para a cadeia. É claro que eu não conduzi nenhuma pesquisa científica, e eu sei que 2 pessoas não representam toda uma nação. Mas eu tenho o péssimo pressentimento de que muitos egípcios estão votando da mesma forma e pelas mesmas razões.

Para tornar as coisas ainda piores, relatórios falando de fraudes eleitorais já vieram a público, e a Irmandade Muçulmana parece ser responsável por grande parte delas. Em muitas centrais de votação, diversos Irmãos ficavam por perto “ajudando” as pessoas a votar – dizendo onde elas estavam registradas e também “lembrando” em quem elas deveriam votar. Eles também gritavam slogans religiosos para os leitores, e pagavam alguns para que votassem neles.

Nada disso me surpreende. Nós já havíamos visto uma prévia disso em março. Com a sua retórica ultra-religiosa e mercantilização do medo, a Irmandade conseguiu ganhar (intimidar?) as mentes e corações de muitos egípcios no referendo constitucional de março. E para a vantagem deles, 77% dos votos foi “sim” para uma série de reformas que permitiram que as eleições parlamentares acontecessem mais rápido, que era o que eles queriam. E como estamos começando a ver, eleições mais rápidas beneficiam os islamistas porque eles estão mais bem organizados e são mais conhecidos do que a sua contraparte secularista. Também não é de surpreender que eles fossem vistos intimidando os eleitores a votarem “sim” dizendo a eles que o voto “não” os levaria para o inferno. E como os egípcios são mais religiosos do que instruídos, esse tipo de intimidação religiosa surte efeito.

Essas são algumas das razões pelas quais a democracia poderia possivelmente levar os islamistas ao poder. E é por isso que eu sou pessimista sobre os méritos da democracia no Egito. Além de precisar de um nível mínimo de educação, a democracia requer uma dose saudável de secularismo para funcionar corretamente. Separação entre o estado e a igreja. Também requer que os cidadãos se vejam como iguais.

Apesar de eu achar que realmente houve uma revolução, eu não acho que o Egito esteja pronto para a democracia. Democracia não é simplesmente fazer eleições. E definitivamente não é ocupar a Praça Tahrir toda sexta-feira. Democracia é uma forma de vida que pressupõe uma população relativamente instruída, separação entre o estado e a igreja, tolerância para com as minorias e paciência! Democracias são conhecidas por serem os corpos de tomada de decisão mais lentos do planeta, porque não existe uma só pessoa controlando com mão de ferro todas as decisões.

Mais do que tudo isso, a democracia NÃO é a única forma legítima de governo. Nós não temos que ser todos como os EUA ou o Reino Unido ou a França (que não entende a democracia muito bem, diga-se de passagem). Eu acho que algo deve ser dito a favor de uma ditadura benevolente, que é o que eu acho que deveria ter acontecido aqui. Algo seguindo mais ou menos a linha da revolução do Nasser em 52. Ao invés de toda a população se revoltar para derrubar o câncer que era Mubarak, eu acho que teria sido melhor se um grupo de liberais instruídos, bem intencionados, desse um golpe em Mubarak e montasse um estado levemente autoritário – um estado que preparasse gradualmente as pessoas para a democracia, aumentando as taxas de alfabetização, tornando a religião um assunto privado, desacreditando as idéias da Irmandade, e criando uma economia baseada em manufaturas, não apenas em pirâmides. Só então nós poderíamos começar a pensar em democratizar o Egito. Qualquer momento antes disso, e o Egito pode muito bem acabar ficando igual ao Irã.

Eu peço desculpas se pareço pessimista demais. E de forma alguma eu quero ser uma profetisa das desgraças. É só que eu tenho essa tendência de ver a política como uma escolha entre um mal pior ou menos pior. Eu sei que existem liberais extremamente bem instruídos e inteligentes no Egito que são capazes de administrar o mundo, não só o Egito. Mas ainda assim eles estão em desvantagem de diversas maneiras, e são em número muito menor do que as massas religiosas não-instruídas. E são essas pessoas que me preocupam. As pessoas que poderiam ser facilmente manipuladas para votar em fanáticos religiosos.

E no final do dia não podemos voltar no tempo e refazer tudo. Tudo o que podemos fazer é esperar pelo melhor. Esperar por um milagre. Porque o futuro do Egito depende dessas eleições. Enquanto espero ansiosa pelos resultados dessas eleições, eu espero que a história prove que estou errada.

*Por favor, sintam-se a vontade para concordar, discordar e debater.


P.S.: Essas são as opiniões da Luna do Cairo, e não refletem as opiniões do Ventre da Dança, a tradução foi fiel ao texto original e foi feita para levantar o debate e para vermos que existem muitas opiniões diferentes. A liberdade de expressão permite isso :-) Vale lembrar também que esse texto é de novembro do ano passado, desde então os islamistas da Irmandade Muçulmana ganharam a maioria das cadeiras do parlamento, os salafistas ficaram em segundo lugar em número de assentos, mas o parlamento foi dissolvido pelos militares. Depois a Irmandade Muçulmana ganhou a eleição para presidente, e agora o atual presidente está lutando para reabrir o parlamento egípcio.