Sábado, 31 de março de
2012
Uma das vantagens de ser uma bailarina contratada no Cairo é
que você pode se apresentar bem regularmente. Algumas de nós trabalham várias
vezes na semana. Outras, várias vezes por dia, dependendo do local, da
popularidade da bailarina, e, hoje em dia, se há movimento o suficiente. E o
que poderia ser melhor do que isso? Fazer o que você ama todo santo dia. Parece
a situação ideal de trabalho. E é. Exceto que eu não estava tão certa disso
quando eu fui contratada. E essa é a razão:
Toda vez que a arte se torna um emprego, você corre o risco
de perder a sua paixão. Isso porque o “emprego” inclui obrigações, rotinas, e
dinheiro, e há alguma coisa na arte que é contrária a tudo isso. Arte é um
presente de Deus (ou do universo ou do que quer que você queira chamar). Não é
algo que podemos nos forçar a fazer a qualquer momento. E é por isso que
ouvimos tantas vezes a palavra “inspiração” associada à arte. O artista busca e
espera pela inspiração. E quando ela
vem, o artista se torna apaixonado e produz o seu melhor trabalho. E como a
inspiração não pode ser forçada nem apressada, parece ridículo fazer da arte
nosso emprego, da mesma forma que faríamos da medicina, do direito ou lavar
roupa. Mesmo assim, de alguma forma, depois de um ano me apresentando toda noite,
eu não perdi nem um grama da paixão pela dança. Ao contrário, o que eu notei é
que a minha paixão pela dança aumentou, e é altamente dependente do entusiasmo
do público.
O público é realmente muito importante na dança oriental. E
isso porque a dinâmica bailarina-público é muito mais íntima do que em outras
danças. Ela é também mais interativa. Diferente do ballet e de outras danças de
palco, nós realmente vemos o nosso
público e fazemos contato visual com ele. Nós sabemos quem está feliz, quem
está interessado, quem se emocionou, quem está de saco cheio, quem está
inseguro, quem está sem graça, quem está imaginando coisas inapropriadas, quem
está nos julgando, etc. Nós podemos puxá-los dos seus lugares e fazê-los
dançar, podemos tirar fotos, e até brincar com eles. E tudo isso afeta o nosso
humor, e tem impacto na nossa apresentação. Dançar para um público que já está
aplaudindo antes mesmo de você entrar no palco faz a apresentação ficar melhor
do que entrar num ambiente cheio de turistas sonolentos e religiosos de cara
amarrada.
Provavelmente eu já me apresentei para todo o tipo de
público imaginável. Egípcios, árabes, turistas, colegas bailarinas, amigos,
inimigos, ricos, pobres, religiosos, não religiosos, políticos, celebridades,
Irmandade Muçulmana, somente mulheres (e uma vez, somente homens), educados,
apreciativos, rudes, agressivos, engraçados, loucos, sonolentos, pessoas de visão
limitada e arrogantes, nojentos. Eu já tive (não)platéia religiosa saindo antes
e durante o meu show, e turistas cansados e com fuso-horário trocado
literalmente dormindo durante toda a apresentação. Eu também já tive públicos
aplaudindo, fazendo zagharouta (N.T.:
o famoso lilililililiiiii) e gritando de alegria. E públicos lançando flores em
mim, me beijando, e me cobrindo de elogios enquanto eu estava no palco! :)
Apesar de eu (obviamente) preferir alguns públicos a outros, cada um me ensinou
alguma coisa sobre mim mesma, sobre a natureza humana, e mais do que tudo,
sobre a dança.
Sem dúvida, a coisa mais importante que eu aprendi é que a
dança do ventre é uma dança social (e eu sou uma pessoa “social”, por mais que
eu pensei que não sou). É uma dança que acontece em ocasiões festivas como
casamentos, hinnas (despedidas de
solteira), festas de aniversário, subuas (uma espécie de batizado), etc. Eu já
“sabia” disso desde que era iniciante, lá em Nova Iorque. Mas
eu sabia disso num nível intelectual, abstrato. Agora, eu sinto esse conhecimento diariamente. E eu sinto de uma forma
diferente também. Como o público e a bailarina são, enquanto durar o show, as
suas respectivas “sociedades”, eles se alimentam da energia um do outro. Dito
isso, eu pensei que seria interessante mapear os tipos de público que já
encontrei, os seus requisitos, e explicar como cada um afeta o meu humor e a
minha dança de forma diferente.
Vou começar pelo público egípcio. O público egípcio é sem
sombra de dúvida o melhor para dança
do ventre. Ninguém gosta mais e entende melhor a música e a dança egípcias do
que os egípcios. Na maioria das vezes, os egípcios ficam ansiosos para ver a
bailarina e dançar com ela. Eles aplaudem antes, durante e depois do show.
Homens e mulheres se convidam para dançar com ela. Alguns nem pensam duas vezes
sobre o assunto. Outros, especialmente mulheres de véu, sabem que “não
deveriam”, mas não conseguem resistir. Eu adoro vê-los se soltando na pista de
dança. E eu adoro ver a reação de outras pessoas da platéia, especialmente dos
turistas que acham que mulheres de véu não dançam. :)
Eu faço minhas melhores apresentações para públicos
egípcios. Ou pelo menos acho que faço. Eu sei que eles entendem o que estou
fazendo, então me sinto livre para apenas dançar. Eu fico livre para me
emocionar, e para ser eu mesma. Não preciso me preocupar se estou fazendo muito
pouco, do jeito como me preocupo quando danço para públicos estrangeiros. Se me
preocupo com alguma coisa, é se estou fazendo demais. A dança do ventre egípcia é mais sutil e relaxada do que as
versões mais acrobáticas que vemos no Ocidente. É sobre sentimento e emoção. Egípcios
não precisam ver você se contorcer toda, ficar de ponta cabeça, ou fazer todos
os movimentos que você já aprendeu o mais rápido possível, só porque você
consegue. Eles precisam saber que você entende a música, que sabe o que está
fazendo e, o mais importante, que você está se divertindo. Eles também querem
ver uma mulher bonita na frente deles, mas essa é outra história.
Entretanto, a coisa que mais gosto do público egípcio é o
fato de que eles estão interessados. Eles usualmente te dão algum tipo de
feedback, e, se necessário, críticas construtivas. Eles te dizem se gostaram ou
não da sua apresentação, da sua roupa, do seu cabelo. Eles te dizem se você
precisa ir mais devagar, se acalmar, ou marcar algum detalhe. Eles te dizem se
você precisa ganhar ou perder peso, e que você não deveria usar aquela cor. E
se eles realmente gostarem de você, eles vão te comparar a bailarinas egípcias
lendárias e te contratar para dançar no casamento dos seus filhos. :) Em
resumo, os egípcios querem te ver como a melhor bailarina que você pode ser. E
isso é algo que eu aprecio muito, assim como críticas construtivas estão em falta na nossa comunidade de dança. As
bailarinas enaltecem as suas amigas e descascam as inimigas sem realmente
pensar na qualidade do seu trabalho, então é bom ouvir um retorno objetivo de
observadores desinteressados que não tem um machado para afiar.
Por mais que eu ame dançar para os egípcios, eu estaria
mentindo se dissesse que eles são todos tão entusiásticos como acabei de
descrever. Tem alguns que simplesmente não gostam nem de música nem de dança. E
tem alguns que gostam, mas não se sentem a vontade de demonstrar isso em público. Eu vejo muito
disso com os que eu chamo de “nouveau
riche” egípcios – a nova classe egípcia com dinheiro e profissões de
verdade, carros bacanas, roupas ocidentais e jeito pretensioso. São pessoas que
se acham importantes que ficam com vergonha de tudo o que é egípcio,
especialmente dança do ventre (como se no Ocidente não tivéssemos garotas seminuas
que dançam por dinheiro). Esses são os egípcios que fingem que não estão te
assistindo dançar, e que fingem que não querem levantar para dançar com você.
E também tem a turma religiosa. Com exceção de um grupo da
Irmandade Muçulmana que encontrei há um mês, praticamente todo o público
religioso sai do recinto quando eu danço, ou então eles ficam sentados de cara
amarrada durante o show inteiro. Na verdade, esse é o pior público para se
apresentar. Como se dançar publicamente com uma roupa reduzida não precisasse
de coragem o bastante, essas pessoas fazem eu me sentir como uma puta pecadora de
baixo nível.
Toda vez que danço para um grupo desse tipo, acabo me
pegando sendo toda psicanalítica (E como não seria assim? Eles invadem o meu
espaço mental). Eu imagino todas as coisas que eles estão pensando sobre mim.
Como eu provavelmente irei para o inferno porque sou bailarina. Eu começo a
pensar sobre religião e política – não os assuntos que quer pensar num palco.
Então eu começo a travar. Meus movimentos se tornam menores e menos
energéticos. Meu sorriso diminui. Eu evito fazer contato visual com todo o
mundo, até mesmo as mulheres. Em resumo, eu recuo. Eu simplesmente não me sinto
a vontade sendo julgada desse jeito
enquanto tento fazer um espetáculo. É desnecessário dizer, esses tipos de
pessoa são públicos horríveis. Mas para a minha sorte, a maioria dos egípcios
para os quais eu danço não é assim. Eles ficam felizes de me ver dançar, e eles
chegam até mesmo a tirar fotos comigo antes que eu suma no camarim.
Apesar de fazer meus shows “sob medida” para o público,
minha única constante é não fazer contato visual com os homens egípcios entre
os expectadores. Nunca. A não ser que eles não estejam acompanhados de
mulheres. As mulheres costumam ficar um pouco irritadas com bailarinas que
olham diretamente para os seus homens, especialmente no dia do seu casamento.
Então eu não o faço. Em respeito a elas. Faz com que elas se sintam mais
confortáveis, e as assegura que eu não sou uma vagabunda-maníaca atrás dos seus
homens.
Públicos estrangeiros são um pouco diferentes. Para alguns,
assistir uma bailarina de dança do ventre é o ponto alto da sua viagem ao
Egito. É fácil ver quem são eles, simplesmente pela forma como os olhos deles
brilham quando você entra no palco. Eles começam a sorrir e a bater palmas, e
não conseguem tirar os olhos de você. Esse tipo de turista me faz amar o meu
trabalho. Eles querem me assistir, e
eu quero dar a eles um bom show. Funciona muito bem.
Existem outros, por outro lado, que tornam o meu trabalho
mais difícil. De vez em quando, eu acabo por dançar para um grupo de turistas
cansados, com jet lag, que estão literalmente dormindo nas cadeiras antes mesmo
de eu entrar em cena. Nada
nesse mundo consegue acordá-los. Nem a minha banda, nem eu. Eu poderia estar de
ponta cabeça e fazer 11 giros seguidos que eles ainda assim não iriam acordar.
Dançar para esse tipo de público é mais do que frustrante, mas novamente, não
posso realmente culpá-los. Eu sei o que é apertar todo o Egito numa viagem de 1
semana. Entre o jet lag, a exaustão, e a intoxicação alimentar, você fica com
vontade de se matar. Mesmo assim, quando estou no palco em frente a um monte de
turistas sonolentos, percebo que eu fico com raiva, e não com pena deles. Eu
perco interesse no que estou fazendo, e mal consigo esperar a hora de sair do
palco e fazer algo mais construtivo.
Depois dos egípcios, o público que eu mais gosto é a de
colegas bailarinas de dança do ventre. Desde que comecei a me apresentar no
Nile Memphis há um ano, eu dancei para bailarinas do mundo inteiro. Como
bailarinas, elas entendem o que estou fazendo e sabem ser um bom público. Elas
também são as mais críticas. Mas a energia é sempre forte e positiva. E elas
sempre se juntam a mim na pista de dança, o que é muito divertido. :)
A grande diversidade de públicos aqui no Cairo é fantástica.
E apesar de eu não gostar igualmente de dançar para todo o mundo, eu aprendi
alguma coisa com cada show – como, por exemplo, o que funciona com
estrangeiros, o que funciona com os egípcios, etc. A melhor parte disso tudo,
entretanto, é que você nunca sabe como é o público antes de entrar no palco. É
sempre um elemento surpresa. Meio que me lembra da “caixa de chocolates” de
Forrest Gump. Você nunca sabe o que vai encontrar. :)
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