Terça-feira, 29 de novembro de 2011
Até agora eu me abstive de me envolver em discussões
políticas sobre o Egito. Principalmente porque assistir o desenrolar dessa
assim chamada revolução com os meus próprios olhos causa grandes emoções. Um
ano depois e com as eleições atualmente em curso, eu não sei quanto tempo mais
eu vou agüentar ficar em silêncio sem explodir. Quero dizer, eu não tirei o meu
diploma em políticas do Oriente Médio para nada. :)
Quando os egípcios tomaram pela primeira vez as ruas para
derrubar o ditador Hosni Mubarak, no dia 25 de janeiro de 2011, eu não pude
deixar de ser levada por todo o fervor revolucionário. E sem dúvida, desde que
me mudei para cá há 3 anos, eu venho dizendo que o Egito é o lugar perfeito
para uma revolução. A vida para o egípcio médio se tornou insuportável. A
pobreza é extrema, o preço dos alimentos é extremamente alto, a corrupção e a
ineficiência do estado não conhecem limites, e as taxas de desemprego superam
os 50%. Eu previ que haveria violência antes da eleição presidencial seguinte, que
seria em novembro, e para a qual Mubarak intencionava inscrever o seu filho.
Mas, dado ao empurrãozinho de inspiração que o Egito recebeu da Tunísia, tudo
aconteceu antes do que eu esperava.
Agora que Mubarak foi embora e a lua de mel acabou, algumas
realidades desagradáveis estão começando a vir à tona. Todas as diferentes
facções que se juntaram para fazer esse coup
d’ètat agora se dividiram. São secularistas, socialistas, nacionalistas, e
(os meus favoritos) islamistas, e estão todos se digladiando pelos corações e
mentes dos egípcios. Apesar de todos eles falarem em termos de democracia,
justiça social, direitos humanos e liberdade, cada facção entende esses
conceitos de forma radicalmente diferente. E cada um visualiza um Egito
radicalmente diferente.
E é por isso que eu tenho duas visões sobre essa revolução.
A americana em mim está radiante de alegria com a retórica de que finalmente a
democracia chegou ao Oriente Médio, e que as pessoas estão dispostas a morrer
por isso. Eu fico toda emocionada quando vejo todo o mundo, desde jovens
adultos até idosas de 80 anos cobertas com véu, fazendo fila para votar. Minha
americana interior, entretanto, leva um choque de realidade com a minha egípcia
interior barra realista, que duvida da sabedoria de se implementar a democracia
num lugar como o Egito. E por diversas boas razões. A mais importante é que
isso vai certamente abrir as portas para os islamistas tomarem o poder. Se não
for mais cedo, mais tarde.
A maioria de nós hesita diante da idéia de um Egito
islâmico. Muitos negam que isso possa vir a acontecer. A minha pergunta é, por
que não? Só porque não seria do interesse do Egito? Também não era do interesse
do Irã. Só porque achamos a idéia dolorosa demais? Nossos sentimentos não negam
a realidade. E a realidade é que a Irmandade Muçulmana e outros islamistas
encontraram solo fértil no povo egípcio, que tem se tornado mais conservador a
cada dia que passa.
Isso sem mencionar que a Irmandade é poderosa, tem
influência, é organizada, bem financiada, e séria. Apesar de ter o poder
político negado a ela desde a sua fundação, a Irmandade tem compensado largamente
isso provendo soluções para problemas sociais em áreas pobres. Ela criou uma
intensa rede de educação, saúde e cursos profissionalizantes. Também
providenciou transporte segregado para as mulheres, para mitigar o assédio em
público. É dona de mais de 22 hospitais e tem escolas em todas as áreas
administrativas egípcias, e montou centros de atendimento para viúvas e órfãos.
Ela permite até mesmo que mulheres grávidas dêem a luz nos seus hospitais, por
uma fração do que custaria em outras clínicas. E ao entrar em áreas onde o
governo falhou, o Islamismo ganhou uma credibilidade há muito perdida pelos
regimes “secularistas” nos últimos 60 anos.
Mesmo que a Irmandade não
oferecesse todo tipo de serviço social, ainda assim ela tem mais credibilidade
que o secularismo. Isso porque na psique política egípcia, o secularismo tem
sido associado e culpado pela corrupção que define as eras Nasser, Sadat e
Mubarak – (apesar de que na realidade eles nunca foram tão seculares quanto
dizem). Essa percepção de fracasso do secularismo deu coragem aos islamistas
para denunciá-lo com veemência.
Outra coisa que nós precisamos considerar é a distribuição
demográfica do Egito. Os egípcios são, em sua maioria, religiosos. Eles levam
os seus profetas e livros sagrados muito a sério. Aproximadamente 90% são
muçulmanos sunitas. E por mais que muitos sejam o que eu gosto de chamar de
“muçulmanos relapsos”, a grande maioria acredita que é religiosa. Ou pelo menos
aspira a ser. A religião ainda é o maior ponto de referência aqui. Ela
direciona como os egípcios devem se vestir, pensar, agir, ver o mundo e até
mesmo como devem entender a história – não inteiramente, mas muito mais do que
na metade secularista do mundo. Dado que o Egito é tão religioso, faz sentido
que as idéias da Irmandade repercutam em tantos egípcios. Por exemplo, eles
querem que a nova constituição afirme que o Egito é um estado islâmico. Para a
maioria dos egípcios que já se vêem como muçulmanos devotos, isso é mais uma
afirmação da realidade do que uma inovação na política egípcia. E para eles não
é nada para se ter medo. São os liberais que não querem que o Egito seja um estado islâmico, e isso para o
egípcio médio parece ser muito suspeito.
Além de ser religioso, o Egito tem muito baixa escolaridade.
As estatísticas oficiais egípcias dizem que a taxa de alfabetização é de 70%,
mas fontes não oficiais dizem que está mais próxima de 50%. Ainda assim 50
milhões de egípcios estão registrados para votar! Não que eu acredite que todos
os 50 milhões irão votar nas eleições – um grande segmento da população ainda é
apático politicamente falando. Mas a taxa de comparecimento à votação bateu um
nível recorde nos últimos dois dias. Especialmente por causa do novo entusiasmo
egípcio com a política, mas também porque o governo está forçando as pessoas a
votarem, ameaçando aqueles que não comparecerem com uma multa de 500 libras e prisão.
Votação forçada! Que tal isso numa democracia? :)
E é por isso que é difícil, para mim, imaginar que um
contingente suficiente de egípcios vai tomar uma decisão informada nas
eleições. Ninguém em nenhum lugar do mundo faz isso, mas aqui é um pouco pior
porque têm mais de 6000 candidatos e 400 partidos para escolher! Ninguém sabe
quem são esses candidatos. E ninguém conhece em quem está votando. Isso é um
problema sério, porque as pessoas acabam por votar nos únicos 2 partidos que
eles já ouviram falar, que são a Irmandade Muçulmana e os Salafitas. Mesmo que
eles não concordem com as suas plataformas políticas. É simplesmente uma
questão de reconhecimento.
E foi exatamente isso que aconteceu com pelo menos 2
egípcios que eu conheço. Dois membros da minha banda para ser mais exata.
Músicos. Artistas. O tipo de pessoa que provavelmente mais vai sofrer sob o
comando islâmico. Eles admitiram terem votado no Partido da Liberdade e da
Justiça – o partido da Irmandade Muçulmana – simplesmente porque eles não
conheciam nenhum dos outros candidatos ou partidos. E eles admitiram terem
votado porque não queriam pagar a multa e ir para a cadeia. É claro que eu não
conduzi nenhuma pesquisa científica, e eu sei que 2 pessoas não representam
toda uma nação. Mas eu tenho o péssimo pressentimento de que muitos egípcios
estão votando da mesma forma e pelas mesmas razões.
Para tornar as coisas ainda piores, relatórios falando de
fraudes eleitorais já vieram a público, e a Irmandade Muçulmana parece ser
responsável por grande parte delas. Em muitas centrais de votação, diversos
Irmãos ficavam por perto “ajudando” as pessoas a votar – dizendo onde elas
estavam registradas e também “lembrando” em quem elas deveriam votar. Eles
também gritavam slogans religiosos para os leitores, e pagavam alguns para que
votassem neles.
Nada disso me surpreende. Nós já havíamos visto uma prévia
disso em março. Com
a sua retórica ultra-religiosa e mercantilização do medo, a Irmandade conseguiu
ganhar (intimidar?) as mentes e corações de muitos egípcios no referendo
constitucional de março. E para a vantagem deles, 77% dos votos foi “sim” para
uma série de reformas que permitiram que as eleições parlamentares acontecessem
mais rápido, que era o que eles queriam. E como estamos começando a ver,
eleições mais rápidas beneficiam os islamistas porque eles estão mais bem
organizados e são mais conhecidos do que a sua contraparte secularista. Também
não é de surpreender que eles fossem vistos intimidando os eleitores a votarem
“sim” dizendo a eles que o voto “não” os levaria para o inferno. E como os
egípcios são mais religiosos do que instruídos, esse tipo de intimidação
religiosa surte efeito.
Essas são algumas das razões pelas quais a democracia
poderia possivelmente levar os islamistas ao poder. E é por isso que eu sou
pessimista sobre os méritos da democracia no Egito. Além de precisar de um
nível mínimo de educação, a democracia requer uma dose saudável de secularismo
para funcionar corretamente. Separação entre o estado e a igreja. Também requer
que os cidadãos se vejam como iguais.
Apesar de eu achar que realmente houve uma revolução, eu não
acho que o Egito esteja pronto para a democracia. Democracia não é simplesmente
fazer eleições. E definitivamente não é ocupar a Praça Tahrir toda sexta-feira.
Democracia é uma forma de vida que pressupõe uma população relativamente instruída,
separação entre o estado e a igreja, tolerância para com as minorias e paciência! Democracias são conhecidas
por serem os corpos de tomada de decisão mais lentos do planeta, porque não
existe uma só pessoa controlando com mão de ferro todas as decisões.
Mais do que tudo isso, a democracia NÃO é a única forma
legítima de governo. Nós não temos que ser todos como os EUA ou o Reino Unido
ou a França (que não entende a democracia muito bem, diga-se de passagem). Eu
acho que algo deve ser dito a favor de uma ditadura benevolente, que é o que eu
acho que deveria ter acontecido aqui. Algo seguindo mais ou menos a linha da
revolução do Nasser em 52. Ao invés de toda a população se revoltar para
derrubar o câncer que era Mubarak, eu acho que teria sido melhor se um grupo de
liberais instruídos, bem intencionados,
desse um golpe em Mubarak e montasse um estado levemente autoritário – um
estado que preparasse gradualmente as pessoas para a democracia, aumentando as
taxas de alfabetização, tornando a religião um assunto privado, desacreditando
as idéias da Irmandade, e criando uma economia baseada em manufaturas, não
apenas em pirâmides. Só
então nós poderíamos começar a pensar
em democratizar o Egito. Qualquer momento antes disso, e o Egito pode muito bem
acabar ficando igual ao Irã.
Eu peço desculpas se pareço pessimista demais. E de forma
alguma eu quero ser uma profetisa das desgraças. É só que eu tenho essa
tendência de ver a política como uma escolha entre um mal pior ou menos pior.
Eu sei que existem liberais extremamente bem instruídos e inteligentes no Egito
que são capazes de administrar o mundo, não só o Egito. Mas ainda assim eles
estão em desvantagem de diversas maneiras, e são em número muito menor do que
as massas religiosas não-instruídas. E são essas pessoas que me preocupam. As
pessoas que poderiam ser facilmente manipuladas para votar em fanáticos
religiosos.
E no final do dia não podemos voltar no tempo e refazer
tudo. Tudo o que podemos fazer é esperar pelo melhor. Esperar por um milagre.
Porque o futuro do Egito depende dessas eleições. Enquanto espero ansiosa pelos
resultados dessas eleições, eu espero que a história prove que estou errada.
*Por favor, sintam-se a vontade para concordar, discordar e
debater.
P.S.: Essas são as
opiniões da Luna do Cairo, e não refletem as opiniões do Ventre da Dança, a
tradução foi fiel ao texto original e foi feita para levantar o debate e para
vermos que existem muitas opiniões diferentes. A liberdade de expressão permite
isso :-) Vale lembrar também que esse texto é de novembro do ano passado, desde então os islamistas da Irmandade Muçulmana ganharam a maioria das cadeiras do parlamento, os salafistas ficaram em segundo lugar em número de assentos, mas o parlamento foi dissolvido pelos militares. Depois a Irmandade Muçulmana ganhou a eleição para presidente, e agora o atual presidente está lutando para reabrir o parlamento egípcio.
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