sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012
Kisses from Kairo - Revolta no Egito 2011
Sábado, 16 de abril, 2011
Revolta no Egito 2011
Por Luna do Cairo
Traduzido por Lalitha
Esse é um relato de como foi a minha experiência com os eventos políticos da sexta-feira, 28 de janeiro de 2011, conhecido como "Sexta-feira de Fúria". Eu me desculpo aos meus leitores por não proporcionar nenhuma imagem para acompanhar a minha história. Apesar de, originalmente, eu ter intenção de fotografar os protestos, eu rapidamente mudei de ideia conforme fui vivenciando o dia. Os atos dos quais fui testemunha foram tão inescrupulosos que eu achei que seria anti-ético capturá-los com uma câmera e espalhá-los no Facebook. Além disso, a mídia já faz um bom trabalho retratando as pessoas nos seus piores momentos. Eles são pagos para isso. Eu não.
Sexta-feira de Fúria
Era uma hora da tarde, e eu tinha acabado de acordar. Enquanto estava deitada na cama, meus pensamentos se direcionaram ao Nile Memphis, o restaurante flutuante no qual eu fui contratada para dançar. Minha banda e eu estávamos escalados para três viagens naquele dia, totalizando seis shows. Mas eles aconteceriam? Supostamente o país deveria ter irrompido com maciças demonstrações anti-governo, e eu não conseguia imaginar os negócios acontecendo conforme programado.
Sem saber se o silêncio do meu quarto no 13° andar significava que não havia demonstrações, eu peguei meu celular para ligar para o meu agente. Depois de diversas tentativas, eu não consegui chamá-lo. Não havia sinal no celular, e eu não tinha como telefonar para ninguém. O Governo egípcio tinha cortado todas as linhas de comunicação, incluindo telefones fixos e a internet, numa última tentativa de impedir os manifestantes de se mobilizarem na Praça Tahrir.
Uma pontada de angústia me embrulhou o estômago. O governo controla a internet?! A última vez que eu tinha experimentado algo desse gênero tinha sido no 11 de setembro em Nova Iorque, e aquele foi um dia assustador. Para piorar as coisas, minha televisão estava quebrada e as minhas duas colegas de quarto não estavam em casa. Eu estava completamente sozinha no meu apartamento, e sem acesso à informação.
Meus pensamentos foram interrompidos pelo canto dos protestos dos manifestantes passando pela rua principal em frente ao meu prédio. Eu corri para a sala e coloquei minha cabeça para fora da janela para ver o que estava acontecendo. Havia centenas de manifestantes, mas eu não conseguia entender o que eles estavam dizendo.
Depois de ver esse episódio, instintivamente eu sabia que meu trabalho seria cancelado. Quem iria cruzar a cidade sob essas circunstâncias para assistir dança do ventre (ou então para dançar dança do ventre!)? Mesmo que as coisas corressem normalmente, eu certamente seria desculpada por não aparecer. Isso era lógico, mas, novamente, esse é o Cairo. :) Então fui me preparar para trabalhar. Verdade seja dita, eu não queria dançar. Eu estava distraída demais pelos eventos políticos mais importantes que estavam por acontecer. O que eu realmente queria era estar com outras pessoas e ter acesso à televisão, o que eu poderia conseguir indo ao barco.
Sem saber como os eventos iriam se desenrolar ou mesmo se eu conseguiria voltar para casa naquela noite, levei meu cachorrinho, Boreo, e separei um pouco de comida para ele para levar. Mala, bolsa e o cachorro nos braços, eu deixei o prédio e chamei um taxi. O caminho que eu costumo fazer para o trabalho estava atipicamente vazio naquele dia. Na verdade, o máximo que eu vi no caminho foi uma horda de oficiais armados com o que parecia um escudo de plástico do tamanho do corpo em frente ao Zoológico Giza. Isto é, até chegarmos ao anel rodoviário e paramos em frente ao navio. Lá eu vi milhares de manifestantes furiosos andando na direção oposta. Eles seguravam cartazes anti-Mubarak e cantavam slogans contra o regime.
Em todos esses anos, e em todos os países que visitei, eu nunca havia visto tanta organização, e eu nunca esperaria ver isso no Cairo, a capital mundial do caos.
No segundo que eu saí do taxi, eu vi o barco atracando no porto. Enquanto ele atracava, eu podia ver a agitação cheia de pânico nos rostos dos trabalhadores que estavam no deque. Eles gritavam e acenavam para o capitão sair do porto. Aparentemente, uma multidão de manifestantes em fúria estava jogando coquetéis molotov no barco e tentando invadi-lo. E eles estavam dois metros atrás de mim! O capitão começou a navegar para longe enquanto eu comecei a correr na direção do navio, e quando cheguei perto o suficiente precisei pular meio metro para embarcar.
Encaminhei-me para o convés, onde estava reunido o resto da tripulação. Procurei pela minha banda, mas os únicos membros que estavam presentes eram o cantor e o tocador de duff (N.T.: pandeiro árabe). O resto da banda não tinha aparecido.
No mais profundo silêncio, olhamos para o horizonte do Cairo, iluminado pelas chamar e fumaça. Onde quer que olhássemos, víamos postos militares em chamas, incêndios, carros virados e multidões de manifestantes lotando as ruas de todas as direções. O cheiro de fumaça permeava o ar, assim como os sons das sirenes. Era realmente a Sexta-feira da Fúria, mais uma guerra do que um protesto.
Depois de uma hora boiando pelo Nilo, os manifestantes saíram do deque e o tráfego começou a fluir, mas o cheiro de fumaça ainda enchia o ar a nossa volta. O sol tinha começado a se pôr, e eu desci do convés para ver o noticiário. Assim que o gerente ligou a televisão o governo anunciou um toque de recolher às 18h. Quem quer que fosse pego nas ruas depois dessa hora estaria nas mãos das forças de segurança egípcias.
Mais uma vez, todos entraram em pânico. Faltavam 15 minutos para o toque de recolher, e apesar de sermos mais de 30 trabalhadores a bordo, tínhamos apenas um carro. Como eu era a única mulher (e estrangeira) presente, o gerente decidiu que o dono do carro deveria me levar para casa. Todos os outros teriam de passar a noite a bordo do navio.
Havia fogo até onde a vista alcançava, e eu não achava era possível ou seguro chegar em casa em 15 minutos. Infelizmente, eu estava certa. A volta para casa foi igual a uma cena vinda diretamente de um filme de terror, e eu não sabia se iria viver para ver um novo dia.
Enquanto eu corria do navio para o carro, esbarrei no meu tecladista. Faltando 10 minutos para o toque de recolher, o convenci a pegar carona no carro comigo, o motorista e mais um membro da equipe do navio. Nós imediatamente encontramos um trânsito impossível de tão emaranhado. É assim que o tráfego no Cairo costuma ser, mas dessa vez as pessoas estavam assustadas. Bandos de homens vagavam pelas ruas, espancados e sangrando. Os motoristas estavam fazendo caminhos tortuosos, tentando sair do trânsito, cada um contribuindo para a cacofonia incessante de buzinas. Em todo lugar que olhávamos, algo estava pegando fogo. E lá estávamos nós, numa interseção cercada de grades, tentando achar uma maneira de me levar em casa em Doqqi.
Finalmente o tráfego em uma das ruas andou e nós estávamos nos movendo. Já tinha passado da hora do toque de recolher, mas estranhamente não tinha nenhum militar ou policial presente. Entretanto, havia enormes anéis de chamas a apenas alguns metros da gente, que intimidaram os motoristas a virarem à direita. Sem querer voltar para a interseção, eu encorajei o motorista a passar o mais rápido possível por pelas chamas. Por mais assustador que isso pareça, eu sabia que era possível - minha experiência anterior em passar com o carro por anéis de fogo me ensinou isso. (A última vez que os egípcios tacaram fogo nas ruas, foi para celebrar a vitória do Egito sobre a Algéria na Copa da África do Sul em 2010)
Felizmente, nós emergimos do outro lado das chamas, vivos e encorajados. Continuamos a dirigir numa rua deserta só para nos encontrarmos novamente no meio do tráfego, num mar de carros buzinando. Dessa vez, aparentemente, não havia escapatória.
Nesse ponto, meu estômago já estava todo revirado. A cidade tinha virado um caos e sons de tiros podiam ser escutados em todo canto. Bandos de homens andavam pelas ruas e atacavam os carros sem razão alguma. O mais estranho, não havia nenhum policial à vista. Será que todos os policiais que normalmente patrulham o Cairo tinha ido embora? Onde estava o exército para revidar e abafar a resistência?
O motorista começou a ficar impaciente, e começou a forçar o caminho pelos carros até que nos encontramos no Sayyeda Aisha, um dos bairros mais pobres e perigosos de todo o Cairo. Antes que pudéssemos sair do bairro, o carro bateu numa pedra e em seguida ficou preso em um buraco. Enquanto o motorista tentava nos tirar do buraco, eu senti uma onda forte de fadiga tomando conta do meu corpo. Comecei a sentir vertigens e a ter dificuldade em ficar acordada. Eu não sabia o que estava acontecendo até o momento em que o homem no banco de trás, que estava lacrimejando muito, disse que tínhamos batido numa bomba de gás lacrimogêneo.
Por mais grogue que eu estivesse, eu entendia o suficiente do que estava acontecendo para entrar em pânico, porque agora eu sabia que a minha fadiga era resultado de gás lacrimogêneo, e que eu podia desmaiar a qualquer momento. Eu fiquei ainda mais apavorada pensando que os outros dentro do carro estavam passando pelo mesmo que eu e desmaiariam junto comigo. Então estaríamos todos desacordados no meio do Sayyda Aisha, presas para ladrões e assassinos. Eu comecei a rezar freneticamente para Deus nos tirar dali. E enquanto isso eu ia perdendo a consciência. Então, olhei para o motorista e vi que ele estava ficando incoerente como eu. Isso me assustou tanto que eu fui capaz de superar o meu torpor e comecei a sacudi-lo violentamente. Gritei para ele pisar fundo no acelerador antes que todos nós apagássemos. Por sorte ele me ouviu e o carro saiu voando do buraco.
Ficando mais tonta a cada segundo, eu lutei contra a vontade de dormir gritando direções ao motorista. Eu obtive sucesso e assim que chegamos numa parte que tinha ar puro, coloquei minha cabeça para fora da janela do carro e respirei o máximo que podia. Pedindo desculpas por ter gritado com ele, sugeri ao motorista que procurássemos abrigo na mesquita ou igreja mais próxima. Nós estaríamos a salvo lá, longe dos incêndios, arrastões e gás lacrimogêneo. No entanto, ao invés de seguir o meu conselho, o motorista apenas continuou a dirigir por qualquer rua que estivesse livre de barreiras, arrastões e incêndios - por três horas! Nós passamos por quase todas as ruas do Cairo, que estava em chamas pelos incêndios da Sexta-feira de Fúria.
Nós finalmente chegamos na Ponte 6 de Outubro, que nos levaria diretamente para a Doqqi. No entanto, nós estávamos chocados por sermos os únicos na ponte pelos últimos quilômetros. Quinze minutos depois, descobrimos o porquê. Batemos em outra bomba de gás lacrimogêneo, essa pior que a última. Eu estava rapidamente pegando no sono e entrando novamente em pânico - dessa vez porque um monte de gente rodeou o carro e começou a tentar vira-lo de cabeça para baixo!
É isso, pensei, acabou. É o fim. Eu não pensei que fôssemos sair dessa vivos. Que forma de morrer. A milhares de quilômetros de casa, correndo atrás do meu sonho de dançar. Por que tinha que acabar assim?
E então, eu tive outro pico de adrenalina. Apesar do estupor, eu consegui sacudir o motorista e forçá-lo a seguir em frente na velocidade máxima, sem se preocupar se batíamos em alguém. Nossas vidas estavam em risco e nós tínhamos o direito de nos salvar. Assim que aceleramos, a multidão se dispersou e nós continuamos na ponte até que chegamos na frente do meu prédio.
Eu estava tão aliviada de estar em casa, e viva! Mas eu não me sentia segura sabendo que não havia policiais ou militares nas ruas, e que eu estaria em casa sozinha. Meu bawab (porteiro) me informou que os saques já tinham começado em diversas áreas da cidade e que os arruaceiros estavam armados com armas de fogo. Isso explicava porque ele e outros porteiros no meu prédio estavam armados com varas de metal e pedaços de madeira. Alguns homens na vizinhança estavam até mesmo derrubando árvores para fazer armas de madeira. Então eu pensei que seria bom ter um homem em casa, daí perguntei ao meu tecladista se ele poderia ficar comigo. Meu bawab começou a reclamar, que isso seria uma violação das "regras" (nós temos uma norma bem rígida de "NUNCA-ter-um-homem-egípcio-em-casa", que é uma forma dos proprietários egípcios de "mostrar serviço" aos valores islâmicos de segregação de gêneros). Mesmo assim, passei por ele sem olhar, e entrei no elevador com o tecladista, sabendo que dessa vez ele não podia ameaçar de chamar a polícia.
Meu tecladista e eu ficamos acordados pelo resto da noite, ouvindo aos sons dos tiros. Nós olhávamos da janela da sala os homens atirando e sendo atingidos. Era como assistir a um filme de ação do 13° andar. Eu imaginava quando o exército iria se mexer e pôr fim aos saques e tiroteios. Eu imaginava o que iria acontecer no dia seguinte. Mais do mesmo? Algum compromisso entre os manifestantes e o regime? Talvez um golpe de estado? Ninguém sabia, e, em primeiro lugar, ninguém imaginava que isso fosse acontecer. Depois de tudo isso, eu só podia esperar que os egípcios conseguissem conquistar o quer que eles estavam lutando por conseguir.
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Que horror.
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