sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Kisses from Kairo - A prostituta do 4° andar


Quinta-feira, 31 de março, 2011
A prostituta do 4° andar
Por Luna do Cairo
Traduzido por Lalitha

Minha vida secreta como bailarina de dança do ventre no Cairo

Isso pode parecer esquisito, mas aqui no Cairo eu levo uma vida secreta. Eu não sou espiã nem nada. Eu sou apenas uma bailarina de dança do ventre. Mas eu faço um grande esforço para esconder isso das pessoas. Quando os egípcios me perguntam o que estou fazendo no Cairo, eu digo a eles que estou escrevendo um livro sobre "arte" egípcia. Eu mantenho as coisas vagas, mas não falsas. Afinal, eu estou escrevendo um livro e ele trata de dança do ventre, que é uma arte egípcia. Mas eu nunca menciono que pratico essa "arte". Fazer isso desencadearia uma série de consequências desfavoráveis para mim, e a menor delas seria ser rotulada de "prostituta".

Você deve estar pensando "E daí? Paus e pedras podem me ferir, mas palavras não me atingem." Infelizmente isso não funciona por aqui. Verdade que não é como se eu fosse ser apedrejada por ser bailarina de dança do ventre, mas eu poderia... vamos ver... ser expulsa do meu apartamento.

O mais estranho, é que foi exatamente isso que aconteceu comigo ano passado (na realidade, hoje é o aniversário de um ano do dia do meu despejo!). O proprietário, na prática, me expulsou do apartamento quando descobriu que eu sou bailarina de dança do ventre.

Foi isso o que aconteceu: Em setembro de 2009, eu estava caçando novamente um apartamento (pela 5ª vez no mesmo ano!). Depois de procurar por semanas, eu finalmente encontrei o apartamento perfeito em Doqqi. Ficava no quarto andar. Ele tinha 3 quartos de dormir, 2 banheiros, uma sala grande, E um quarto extra que poderia ser convertido num estúdio de dança. O mais importante: o preço era justo. Eu disse ao corretor que eu alugaria o apartamento e gostaria de assinar um contrato com o proprietário. O proprietário, segundo me informaram, estava morando no Kuwait, mas a sua irmã, Wiam, agiria em seu nome. Então eu fui conhecer Wiam e seus dois jovens filhos.

No encontro foi bastante cordial. E então surgiu A pergunta: "Então, o que você está fazendo no Cairo?" (note que, Wiam tinha acabado de dizer que ela era muito religiosa, e que toda a família dela era muito conservadora). "Eu... ah...estou escrevendo um livro sobre arte egípcia", falei sem nem pensar. "Ah! Então você frequenta a Universidade Americana no Cairo?", ela perguntou. "Hum... você pode dizer que sim", eu respondi, e então assinamos um contrato de aluguel de 6 meses.

Vamos avançar 2 meses. Eu fui contratada para dançar no Paradise Hotel, numa cidade chamada Ras Sidr, que fica a 3 horas do Cairo. Eu fiz o meu show habitual de 45 minutos com 3 mudanças de roupa. Deve ter sido a primeira vez que o hotel contratou uma bailarina estrangeira, e o público estava adorando cada segundo do show. Eles estavam animados, assobiando, batendo palmas, gritando e até mesmo jogando rosas para mim. Eu deixei o palco me sentindo muito bem comigo mesma...

...E então, 2 meninos se aproximaram quando eu estava me dirigindo ao camarim. "Com licença", eles disseram, "Você não é a moça que mora na Rua Doqqi n°22?", "HEIN? SIM!!! Eu... sou. Espera aí, como vocês sabem disso?!", eu perguntei. "Porque nossa mãe é a Wiam", eles responderam. "Ela estava sentada com a gente lá dentro assistindo você dançar. Ela disse que você dança muito bem."

As palavras dos garotos pesaram dentro de mim. Toda a alegria que eu sentia há dois segundos antes de vê-los se transformou em náusea. "Que sorte a minha", pensei. "Wiam me pega dançando dança do ventre num hotel aleatório a 3 horas de distância do Cairo! Agora ela vai contar para o irmão dela e ele vai me expulsar do apartamento."

Claro que meus pensamentos se tornaram realidade. Mohamed voltou do Kuwait para o Cairo em março do ano seguinte, e a primeira coisa que ele fez foi dizer que mais do que dobraria o valor do aluguel. Quando eu respondi que então eu não poderia pagar esse aumento, ele respondeu secamente que eu CERTAMENTE tinha muito dinheiro, visto que eu era bailarina de dança do ventre.

"Então é disso que se trata", eu disse, "eu sou bailarina de dança do ventre e isso te deixa desconfortável". Ele admitiu que ele não gostava da ideia de uma bailarina morar no apartamento dele, porque ele e a sua família eram "pessoas de Deus".

Então, o que isso faz de mim?! A filha de Satã?!?

Uma das coisas que eu mais odeio no Egito é a forma como a maioria dos egípcios vê a dança do ventre. Aqui, assim como no resto do mundo muçulmano árabe, dança do ventre é sinônimo de prostituição. Não é uma arte. A bailarina, ou ra'assa, é uma puta. Qualquer mulher que ouse mostrar o corpo e "excitar" os homens com suas sacudidas e vibrações sedutoras é desprezada.

Reconhecidamente, boa parte dessa forma de pensar se deve ao fato que, historicamente, muitas bailarinas de dança do ventre egípcias se envolviam com prostituição. Na realidade, é famoso o fato de que Mohamed Ali baniu todas as bailarinas de dança do ventre (awalim) do Cairo no século XIX por, supostamente, terem espalhado gonorréia entre os soldados franceses e ingleses posicionados na cidade.

O outro fator responsável por esse ponto de vista é o Islã, que tem uma presença forte no imaginário egípcio. O Islã ensina a modéstia feminina, e que a beleza de uma mulher deve ser reservada ao seu marido. Mostrar os cabelos ou o corpo na presença de outros homens é considerado pecado (sem mencionar dançar semi nua na frente deles!).

Ainda que eu estivesse consciente dessa mentalidade, eu sempre tive uma atitude de "não é meu problema" com relação a isso. Agora que eu moro aqui, é meu problema. Eu tomo precauções extras para que ninguém saiba que eu sou bailarina de dança do ventre. Eu mantenho a minha maquiagem a mais discreta possível quando estou indo e voltando do trabalho. Eu embrulho minhas bengalas de Said num saco de lixo preto grande, e quando pratico a dança em casa, mantenho a música baixa.

Mesmo assim, meu segredo acaba sendo descoberto, como os eventos que me levaram ao despejo comprovam. Na verdade, é mais comum as pessoas descobrirem, elas tendem a descobrir que eu sou bailarina de dança do ventre. Uma semana após me mudar para o meu novo apartamento, eu acidentalmente me tranquei do lado de fora. Incapaz de entrar, eu pedi ao meu vizinho que ele subisse no meu apartamento através das nossas varandas conectadas, pegasse a minha chave extra dentro da minha bolsa e abrir a porta. Aparentemente, ele foi incapaz de encontrar a chave, e acabou virando a bolsa de cabeça pra baixo para esvaziá-la. A chave caiu, junto com umas 40 fotos minhas nas minhas roupas de dança! E pronto. Meu segredo foi descoberto! Meu vizinho sabe que sou bailarina de dança do ventre. E, no Egito, se uma pessoa sabe, o país inteiro sabe. De fato, não demorou muito para os bawabs (porteiros) começarem a me olhar estranho quando eu entrava e saía do prédio. Eles também começaram a prestar mais atenção aos homens que as minhas colegas de quarto levavam para o apartamento, e ameaçaram chamar a polícia porque eu tinha visitas masculinas (i.e. eu estava criando um puteiro)! Apesar de não ser proibido ter ambientes onde convivem ambos os sexos, o sentimento islâmico com relação a segregação de gênero pesa mais do que outras considerações.

No entanto, por mais difícil que seja para mim, para as bailarinas egípcias é muito pior. Elas não só precisam esconder as suas vidas dos seus vizinhos e proprietários dos seus apartamentos, mas elas também precisam lidar com as suas famílias. A maior parte dos egípcios jamais aceitaria que suas filhas/irmãs/mães trabalhassem como bailarinas de dança do ventre. Eu me sinto mal por essas mulheres. Por um lado, elas ganham muito bem dançando. Por outro lado, elas levam uma vida dupla. Para tornar as coisas ainda piores, 99% delas realmente acreditam que a dança do ventre é haram, pecado, e juram que vão parar assim que tiverem juntado dinheiro suficiente para ter uma vida confortável. Para elas não é só um conflito social. É um conflito interno, e é um conflito que eu, como estrangeira, não preciso lidar.

14 comentários:

  1. Nossa, eu sabia que eles eram preconceituosos mas não imaginei que eles pudessem chegar a tanto ...Uma pena

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    1. Pois é, Kaira... é mesmo assustador. O que mais impressiona, pelo menos é o que eu acho, é que apesar deles pensarem isso das bailarinas, eles a-d-o-r-a-m um show de dança do ventre. Hipocrisia tem em todo lugar, né?
      Beijos!

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  2. Amei esse post, também achei que fosse amenizado!

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    1. Obrigada Hanna! Pois é... a situação no Egito tem piorado nos últimos anos também :-(

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  3. É estranho mesmo saber que vão aplaudi-a de noite e, ao amanhecer vão destratá-la.
    Força, companheira de sonho.
    Terá em nós palavras para continuar seu caminho iluminado por Deus!
    Bjks

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  4. Força, Habibah!!!Viva intensamente seu sonho e, quando precisar de colo é só chamar!

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  5. Mais, uma vez, obrigada por traduzir e compartilhar conosco. Estou te linkando lá no (An)danças. Um abraço.

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  6. Obrigada por compartilhar. Força, nosso Deus é amor, ele nos ama como somos, pecado é julgar os outros. A dança é conexão com a divindade e não agressão à ela. Força.

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  7. MOREI NO CARIO E DANCEI PROFISSIONALMENTE LA, ENTENDO PERFEITAMENTE

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  8. Como vc disse: hipocrisia te em todo lugar... Nessas horas eu tenho q admitir q o Brasil apesar de suas imensas contradições, é o menos pior em várias coisas.

    Parabéns pela sua coragem!

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  9. estou prestes a recebet e talvez me casar com um jovem egício muçulmano.nos comunicamos há um ano.embora ele diga que NÂO, temo pela minha liberdade e de minhas duas jovens filhas excepcionais.o que acham?

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    1. Eu acho que você tem toda razão para estar preocupada, especialmente se você se casar no Egito, porque lá as leis são diferentes, você e suas filhas passam a ser quase que posse do seu futuro marido. Se eu fosse você eu casava no Brasil e morava aqui.

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  10. Não esperava que esse povo fosse assim, tão preconceituoso, mesmo sabendo à respeito das antigas histórias que explicam sobre "bailarinas" e "dançarinas".
    Excelente o seu post, mas sabe, você não deve se preocupar,, como disse, é um conflito interno que não é seu e você não é obrigada a se afetar com isso, pois eu mesma assim como muitas aqui, admiro toda essa coragem e amor pela dança, meus parabéns Laura!

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