sábado, 22 de setembro de 2012

Kisses from Kairo - Sobre ser americana



Sábado, 11 de fevereiro de 2012

Por Luna do Cairo
Traduzido por Lalitha    

Ano passado eu comprei um tecido brilhante vermelho, branco e azul e fiz uma roupa com a bandeira americana. Eu nunca tive a intenção de fazer isso, mas quando vi as lycras de estrelas e listras enquanto estava fazendo compras, simplesmente não pude resistir. Era como se o tecido dissesse para mim “me use”. Deixando a política de lado, é uma bandeira bonita. E, sim, eu sou maluca assim. :)

A roupa ficou absolutamente linda, e eu dancei muito com ela. Primeiro, eu fiquei relutante de usá-la, dada a visão não favorável dos egípcios com relação aos Estados Unidos. Mas um dia eu resolvi testar a sorte e usá-la com um público egípcio. O pior que poderia acontecer, pensei, era eu ser vaiada para fora do palco. Eu estava disposta a correr esse risco. Para minha surpresa, nada disso aconteceu. Na verdade, meu público começou a bater palmas e a gritar no momento em que eu entrei em cena. Muitos deles chegaram até a implorar para tirar fotos comigo.

Desde então eu usei essa roupa milhares de vezes. E eu sempre obtive a mesma reação. Ela então se tornou uma das minhas roupas mais populares. Eu cheguei até mesmo a receber pedidos para usá-la em alguns eventos particulares. A última vez que alguém me pediu para vesti-la foi há mais ou menos 3 semanas, quando dancei para o ex-Ministro do Interior egípcio, Ahmed Rushdie, e quando eu dancei no novo canal de TV 24h egípcio de dança do ventre, “El-Tit” (Não pergunte! :P – N.T.: em inglês “El-Tit” pode ter uma conotação bizarra, pois “tit” é seios em inglês). O show de TV foi particularmente engraçado, porque das 10 roupas que eu levei comigo o pessoal da produção insistiu que eu vestisse a bandeira. Nas duas ocasiões, eu recusei educadamente.

Apesar da minha roupa de bandeira americana ser adorada pelo público, eu jamais me deixaria ser vista usando-a hoje em dia. Especialmente na TV egípcia! Os tempos mudaram. Eu nunca imaginei que fosse dizer isso, mas ser americana no Cairo está começando a ser desconfortável. Sim, o meu árabe é bem convincente, e não, eu não ando por aí forçando ninguém a engolir a democracia, mas com todo o apontar de dedos que tem acontecido ultimamente na política, eu me sinto meio apreensiva em divulgar a minha nacionalidade (e ainda usá-la no meu corpo! :D). O que não é normal para mim, nem para o Egito. Os egípcios são conhecidos por ser um dos povos mais hospitaleiros do mundo. Eles são ótimos para distinguir entre governos e cidadãos comuns, e sempre foram tranqüilos para discutir sobre política. Tanto que eu sempre revirei os olhos quando um colega americano me perguntava incrédulo, “mas você não tem medo de dizer para as pessoas que é americana?”. Infelizmente, eu não posso mais revirar os olhos quando alguém me faz essa pergunta. Por mais que me irrite ter de dar o braço a torcer para alguns americanos de cabeça limitada, ser americana no Egito não é mais a mesma coisa. Eu passei os últimos 8 anos viajando para, estudando e vivendo em bastiões do anti-americanismo, tais como Iêmen, Síria, Cuba e Egito. E eu nunca pensei duas vezes em dizer que sou americana. Aqui e agora, entretanto, estou começando a pensar duas vezes. Ou três.

Não me entenda mal. Eu não me sinto exatamente ameaçada. (Ainda) E quem sabe? Talvez a minha sensação seja totalmente injustificada. É só porque a opinião pública popular egípcia está ficando um pouco xenofóbica. Especialmente com relação aos americanos. Ultimamente, a fofoca na “Rua Árabe” (e na mídia, e nas universidades e todo lugar) é que toda explosão de violência no Egito é resultado do trabalho de “forças externas”. Os mais acusados disso são EUA e Israel (óbvio), Irã, Alemanha e (estranhamente) Qatar. :) Tudo, desde o massacre no jogo de futebol semana passada até a própria revolução em si, é culpa de estrangeiros que querem ver o Egito em ruínas. Porquê, eu não sei, mas é isso que muitos egípcios estão dizendo. Claro que as autoridades têm tudo a ver com isso. Eles se tornaram mestres na arte política do Oriente Médio da distração, que é basicamente culpar os EUA e Israel por todos os seus crimes e fracassos. Para a sorte do exército, essa tática está se provando eficiente, porque os egípcios costumam ser muito ingênuos. Especialmente em se tratando de política. Comece uma fofoca sobre os EUA e o seu “aliado” e irão acreditar nela. O cepticismo não vai muito longe por aqui.

Além disso, os egípcios preferem acreditar que outras pessoas são responsáveis pelos episódios de violência que surgem de tempos em tempos. Em parte, por conta da longa história de interferências no Oriente Médio, e em parte, porque os egípcios chocaram a sua própria consciência nacional. Os egípcios estão sendo testemunhas de crimes que eles nunca imaginaram que poderiam acontecer nas suas terras. Desde o massacre no jogo de futebol semana passada, à violência entre Cristãos e Muçulmanos até a maldita revolução em si, é psicologicamente mais conveniente culpar forças externas invisíveis do que a si mesmos. Cada vez mais, menos egípcios estão dispostos a se responsabilizar pela revolução e por tudo o que houve depois.

A última catástrofe de uma longa lista envolvendo estrangeiros aconteceu na semana passada, a derrocada dos “19 do Cairo”. São 19 americanos funcionários de ONGs, detidos contra a sua vontade, sob falsas acusações de espionagem. Eles também estão sendo acusados de utilizar “fundos adquiridos ilegalmente” para fomentar a violência contra o regime... isto é, pagar “criminosos” egípcios para criar o massacre no jogo de futebol, para iniciar os estupros em grupo contra as mulheres na celebração do dia 25 de janeiro, etc. Bom, eu não sou partidária desses missionários da democracia que trabalham em ONGs (por diversas razões), mas de alguma forma, eu acho difícil de acreditar que os EUA tenham algum interesse em promover agitações civis. Manter relações amigáveis com o Egito tem sido por um longo tempo um dos pilares da política internacional dos EUA. Isso previne o Egito de atacar Israel e mantém o acesso dos EUA ao Canal de Suez. Nada mudou aí. Ao contrário, o que parece que está acontecendo é que o Conselho Supremo das Forças Armadas (SCAF em inglês) está tentando desviar a atenção de si mesmo pela terrível falha de segurança no jogo de futebol da semana passada. Esse desastre, que resultou na morte de mais de 70 pessoas, foi um grande golpe para o SCAF, que estava sendo acusado de tudo, desde negligência à conspiração. Culpar essas mortes nas “forças externas invisíveis” (ou seja, EUA e Israel), foi a brilhante idéia do exército de sair do centro das atenções. É tão óbvio. Ainda assim, o que me mata é quão prontamente os egípcios acreditam nessas coisas – o quão prontamente eles acreditam nas mesmas pessoas que os enchem de tiros quando eles protestam. Quer dizer, vamos lá gente. Isso não é complicado.

Aliás, nada disso me surpreende. Até mesmo Mubarak usava os EUA como bode expiatório toda vez que ele queria desviar a atenção negativa de si mesmo. Mas o que torna esse jogo de culpar os outros mais assustador dessa vez, é que as pessoas estão fazendo política com as próprias mãos. Diferente do período Mubarak, quando a política era terreno exclusivo do governo, as pessoas estão agora fazendo protestos e às vezes se envolvendo em episódios de violência baseados no seu novo ardor político. Isso é bom e ruim. Bom que os egípcios tenham encontrado a força de vontade e os meios de moldar o seu próprio futuro. Ruim quando eles tomam a justiça com as próprias mãos e ferem pessoas inocentes baseados em teorias conspiratórias.

É verdade que não ajuda que essas “forças externas invisíveis” não são, de todo, invisíveis. Pessoas como as dos “19 do Cairo” não são agentes invisíveis americanos da destruição. Eles são americanos comuns, expatriados, vivendo e trabalhando no Egito. Eles têm nomes e rostos e amigos egípcios. E aqueles 3 patetas que jogaram coquetéis molotov nas forças de segurança egípcias alguns meses atrás... eles eram estudantes americanos que vieram para cá estudar árabe. Eles também têm nomes, rostos e amigos egípcios. Alguém precisa dizer para esses idiotas que essa não é a luta deles. E que eles estão estragando tudo para o resto de nós. Enquanto nós apreciamos o “cometimento deles com a democracia”, eles estão apagando a tradicional distinção entre o governo americano e os cidadãos americanos. E isso está fazendo mais mal do que bem.

Apesar de eu duvidar seriamente de os “19 do Cairo” serem culpados de espionagem e sabotagem, eu acho que talvez esteja na hora deles pensarem em fechar o seu negócio. Para começar, o clima político atual do Egito não está exatamente promovendo a democracia. A maioria dos egípcios não quer a democracia. Eles a igualam à decadência moral ocidental. O exército certamente também não quer a democracia. Isso diminuiria o seu poder. Então, talvez, nós americanos devemos para de forçá-la goela abaixo. Além disso, isso não faz a gente ficar bem na foto. Especialmente quando não somos consistentes sobre esse assunto. Nós não estamos, por exemplo, forçando a democracia na Síria. Como os egípcios têm perguntado desde o início, “intu malku?” Quer dizer, “o que é isso para vocês (americanos)? (se nós temos democracia ou não)”. Eu acho que é uma pergunta válida.

Além da opinião egípcia sobre a democracia, os americanos deviam estar pensando sobre outra coisa. Democracia + Oriente Médio = extremismo religioso. E isso não nem do interesse das pessoas, nem dos EUA. É tão simples. O que não dá para entender? Ou a gente simplesmente precisa ganhar todas as batalhas, físicas e ideológicas?

Se ser americana significa acreditar que a democracia pode ser imposta em todo e qualquer lugar, então eu não POSSO ser americana. Nós não podemos impor a democracia em partes do mundo que não tem histórico de secularismo, direitos humanos e limite de prazo. E a gente não pode continuar se metendo nos problemas internos dos outros países. O que nós podemos fazer é tentar dar o melhor exemplo de democracia no nosso país, na esperança de que outros ao redor do mundo um dia verão a luz. Até lá, é melhor deixar a natureza seguir o seu curso.


*Só para constar, eu quero fazer uma roupa com a bandeira egípcia há séculos. Mas muitos egípcios me aconselharam a não fazer isso, porque dançar com a bandeira deles seria tomado como um grande sinal de desrespeito. Mesmo que eu veja como um sinal de adoração.

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