Sábado, 11 de fevereiro de 2012
Ano passado eu comprei um tecido brilhante vermelho, branco
e azul e fiz uma roupa com a bandeira americana. Eu nunca tive a intenção de
fazer isso, mas quando vi as lycras de estrelas e listras enquanto estava
fazendo compras, simplesmente não pude resistir. Era como se o tecido dissesse
para mim “me use”. Deixando a política de lado, é uma bandeira bonita. E, sim, eu sou maluca assim. :)
A roupa ficou absolutamente linda, e eu dancei muito com
ela. Primeiro, eu fiquei relutante de usá-la, dada a visão não favorável dos
egípcios com relação aos Estados Unidos. Mas um dia eu resolvi testar a sorte e
usá-la com um público egípcio. O pior que poderia acontecer, pensei, era eu ser
vaiada para fora do palco. Eu estava disposta a correr esse risco. Para minha
surpresa, nada disso aconteceu. Na verdade, meu público começou a bater palmas
e a gritar no momento em que eu entrei em cena. Muitos deles
chegaram até a implorar para tirar fotos comigo.
Desde então eu usei essa roupa milhares de vezes. E eu
sempre obtive a mesma reação. Ela então se tornou uma das minhas roupas mais
populares. Eu cheguei até mesmo a receber pedidos para usá-la em alguns eventos
particulares. A última vez que alguém me pediu para vesti-la foi há mais ou
menos 3 semanas, quando dancei para o ex-Ministro do Interior egípcio, Ahmed
Rushdie, e quando eu dancei no novo canal de TV 24h egípcio de dança do ventre,
“El-Tit” (Não pergunte! :P – N.T.: em inglês “El-Tit” pode ter uma conotação
bizarra, pois “tit” é seios em inglês). O show de TV foi particularmente
engraçado, porque das 10 roupas que eu levei comigo o pessoal da produção
insistiu que eu vestisse a bandeira. Nas duas ocasiões, eu recusei
educadamente.
Apesar da minha roupa de bandeira americana ser adorada pelo
público, eu jamais me deixaria ser vista usando-a hoje em dia. Especialmente
na TV egípcia! Os tempos mudaram. Eu nunca imaginei que fosse dizer isso, mas
ser americana no Cairo está começando a ser desconfortável. Sim, o meu árabe é
bem convincente, e não, eu não ando por aí forçando ninguém a engolir a
democracia, mas com todo o apontar de dedos que tem acontecido ultimamente na
política, eu me sinto meio apreensiva em divulgar a minha nacionalidade (e
ainda usá-la no meu corpo! :D). O que não é normal para mim, nem para o Egito.
Os egípcios são conhecidos por ser um dos povos mais hospitaleiros do mundo.
Eles são ótimos para distinguir entre governos e cidadãos comuns, e sempre
foram tranqüilos para discutir sobre política. Tanto que eu sempre revirei os
olhos quando um colega americano me perguntava incrédulo, “mas você não tem
medo de dizer para as pessoas que é americana?”. Infelizmente, eu não posso
mais revirar os olhos quando alguém me faz essa pergunta. Por mais que me
irrite ter de dar o braço a torcer para alguns americanos de cabeça limitada,
ser americana no Egito não é mais a mesma coisa. Eu passei os últimos 8 anos
viajando para, estudando e vivendo em bastiões do anti-americanismo, tais como
Iêmen, Síria, Cuba e Egito. E eu
nunca pensei duas vezes em dizer que sou americana. Aqui e agora, entretanto,
estou começando a pensar duas vezes. Ou três.
Não me entenda mal. Eu não me sinto exatamente ameaçada.
(Ainda) E quem sabe? Talvez a minha sensação seja totalmente injustificada. É
só porque a opinião pública popular egípcia está ficando um pouco xenofóbica.
Especialmente com relação aos americanos. Ultimamente, a fofoca na “Rua Árabe”
(e na mídia, e nas universidades e todo lugar) é que toda explosão de violência
no Egito é resultado do trabalho de “forças externas”. Os mais acusados disso
são EUA e Israel (óbvio), Irã, Alemanha e (estranhamente) Qatar. :) Tudo, desde
o massacre no jogo de futebol semana passada até a própria revolução em si, é
culpa de estrangeiros que querem ver o Egito em ruínas. Porquê , eu
não sei, mas é isso que muitos egípcios estão dizendo. Claro que as autoridades
têm tudo a ver com isso. Eles se tornaram mestres na arte política do Oriente
Médio da distração, que é basicamente culpar os EUA e Israel por todos os seus
crimes e fracassos. Para a sorte do exército, essa tática está se provando
eficiente, porque os egípcios costumam ser muito ingênuos. Especialmente em se
tratando de política. Comece uma fofoca sobre os EUA e o seu “aliado” e irão acreditar nela. O cepticismo não
vai muito longe por aqui.
Além disso, os egípcios preferem acreditar que outras
pessoas são responsáveis pelos episódios de violência que surgem de tempos em tempos. Em parte, por
conta da longa história de interferências no Oriente Médio, e em parte, porque
os egípcios chocaram a sua própria consciência nacional. Os egípcios estão
sendo testemunhas de crimes que eles nunca imaginaram que poderiam acontecer
nas suas terras. Desde o massacre no jogo de futebol semana passada, à
violência entre Cristãos e Muçulmanos até a maldita revolução em si, é
psicologicamente mais conveniente culpar forças externas invisíveis do que a si
mesmos. Cada vez mais, menos egípcios estão dispostos a se responsabilizar pela
revolução e por tudo o que houve depois.
A última catástrofe de uma longa lista envolvendo
estrangeiros aconteceu na semana passada, a derrocada dos “19 do Cairo”. São 19 americanos funcionários de ONGs, detidos contra a sua vontade, sob
falsas acusações de espionagem. Eles também estão sendo acusados de utilizar
“fundos adquiridos ilegalmente” para fomentar a violência contra o regime...
isto é, pagar “criminosos” egípcios para criar o massacre no jogo de futebol,
para iniciar os estupros em grupo contra as mulheres na celebração do dia 25 de
janeiro, etc. Bom, eu não sou partidária desses missionários da democracia que
trabalham em ONGs (por diversas razões), mas de alguma forma, eu acho difícil
de acreditar que os EUA tenham algum interesse em promover agitações civis.
Manter relações amigáveis com o Egito tem sido por um longo tempo um dos
pilares da política internacional dos EUA. Isso previne o Egito de atacar
Israel e mantém o acesso dos EUA ao Canal de Suez. Nada mudou aí. Ao contrário,
o que parece que está acontecendo é que o Conselho Supremo das Forças Armadas
(SCAF em inglês) está tentando desviar a atenção de si mesmo pela terrível
falha de segurança no jogo de futebol da semana passada. Esse desastre, que
resultou na morte de mais de 70 pessoas, foi um grande golpe para o SCAF, que
estava sendo acusado de tudo, desde negligência à conspiração. Culpar essas
mortes nas “forças externas invisíveis” (ou seja, EUA e Israel), foi a brilhante idéia do exército de sair do
centro das atenções. É tão óbvio. Ainda assim, o que me mata é quão prontamente
os egípcios acreditam nessas coisas – o quão prontamente eles acreditam nas
mesmas pessoas que os enchem de tiros quando eles protestam. Quer dizer, vamos
lá gente. Isso não é complicado.
Aliás, nada disso me surpreende. Até mesmo Mubarak usava os
EUA como bode expiatório toda vez que ele queria desviar a atenção negativa de
si mesmo. Mas o que torna esse jogo de culpar os outros mais assustador dessa
vez, é que as pessoas estão fazendo política com as próprias mãos. Diferente do
período Mubarak, quando a política era terreno exclusivo do governo, as pessoas
estão agora fazendo protestos e às vezes se envolvendo em episódios de
violência baseados no seu novo ardor político. Isso é bom e ruim. Bom que os
egípcios tenham encontrado a força de vontade e os meios de moldar o seu
próprio futuro. Ruim quando eles tomam a justiça com as próprias mãos e ferem
pessoas inocentes baseados em teorias conspiratórias.
É verdade que não ajuda que essas “forças externas
invisíveis” não são, de todo, invisíveis. Pessoas como as dos “19 do Cairo” não
são agentes invisíveis americanos da destruição. Eles são americanos comuns,
expatriados, vivendo e trabalhando no Egito. Eles têm nomes e rostos e amigos
egípcios. E aqueles 3 patetas que jogaram coquetéis molotov nas forças de segurança egípcias alguns meses
atrás... eles eram estudantes americanos que vieram para cá estudar árabe. Eles
também têm nomes, rostos e amigos egípcios. Alguém precisa dizer para esses idiotas
que essa não é a luta deles. E que
eles estão estragando tudo para o resto de nós. Enquanto nós apreciamos o
“cometimento deles com a democracia”, eles estão apagando a tradicional
distinção entre o governo americano e os cidadãos americanos. E isso está
fazendo mais mal do que bem.
Apesar de eu duvidar seriamente de os “19 do Cairo” serem
culpados de espionagem e sabotagem, eu acho que talvez esteja na hora deles
pensarem em fechar o seu negócio. Para começar, o clima político atual do Egito
não está exatamente promovendo a democracia. A maioria dos egípcios não quer a
democracia. Eles a igualam à decadência moral ocidental. O exército certamente
também não quer a democracia. Isso diminuiria o seu poder. Então, talvez, nós
americanos devemos para de forçá-la goela abaixo. Além disso, isso não faz a
gente ficar bem na foto. Especialmente quando não somos consistentes sobre esse
assunto. Nós não estamos, por exemplo, forçando a democracia na Síria. Como os
egípcios têm perguntado desde o início, “intu
malku?” Quer dizer, “o que é isso para vocês (americanos)? (se nós temos
democracia ou não)”. Eu acho que é uma pergunta válida.
Além da opinião egípcia sobre a democracia, os americanos
deviam estar pensando sobre outra coisa. Democracia + Oriente Médio =
extremismo religioso. E isso não nem do interesse das pessoas, nem dos EUA. É
tão simples. O que não dá para entender? Ou a gente simplesmente precisa ganhar
todas as batalhas, físicas e
ideológicas?
Se ser americana significa acreditar que a democracia pode
ser imposta em todo e qualquer lugar, então eu não POSSO ser americana. Nós não
podemos impor a democracia em partes do mundo que não tem histórico de
secularismo, direitos humanos e limite de prazo. E a gente não pode continuar
se metendo nos problemas internos dos outros países. O que nós podemos fazer é
tentar dar o melhor exemplo de democracia no nosso país, na esperança de que
outros ao redor do mundo um dia verão a luz. Até lá, é melhor deixar a natureza
seguir o seu curso.
*Só para constar, eu quero fazer uma roupa com a bandeira
egípcia há séculos. Mas muitos egípcios me aconselharam a não fazer isso,
porque dançar com a bandeira deles seria tomado como um grande sinal de
desrespeito. Mesmo que eu veja como um sinal de adoração.
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