Segunda-feira, 30 de janeiro de 2012
Acabou de cair a ficha para mim que eu tenho morado no Cairo
por mais de 3 anos. Isso é um bom tempo para quem nunca teve a intenção de
viver ou trabalhar aqui. Com toda
essa incerteza no ar sobre o futuro do Egito, as pessoas se perguntam por
quanto tempo mais eu e outros como eu conseguirão se manter por aqui. Mas ao
invés de especular sobre o futuro (de novo), eu decidi refletir sobre o meu
passado e compartilhar alguns dos ajustes que eu precisei fazer como bailarina.
E foram muitos ajustes, porque a dança do ventre fora do Egito é de uma espécie
completamente diferente da dança do ventre no Egito. Houve ajustes na técnica,
musicalidade, e até mesmo fisicamente. Houve ajustes na seleção musical e no
entendimento das músicas, escolha das roupas e do público. Também houve
mudanças nas atitudes, ética e comportamento.
Técnica
Talvez um dos meus maiores desafios iniciais, como uma
estudante estrangeira de dança egípcia foi aprender a técnica correta. A
técnica egípcia é muito mais sutil, cheia de nuances, e intrincada do que a
maioria de nós aprende em
casa. Os movimentos são menores e mais precisos, mais
controlados e significativos (na minha humilde opinião). Ao estudar dança aqui,
a primeira coisa que precisei fazer foi desaprender tudo que eu achava que eu
sabia e começar do zero. Por exemplo, nos EUA eu aprendi a fazer tudo em plié. Shimmy em plié.
Batidas de quadril em
plié. Oitos em plié. Eu nunca havia notado o quanto eu
dobrava os meus joelhos até eu vir aqui e os egípcios me apontarem isso. Não só
os joelhos flexionados ficam feios, mas eles nos impedem de conseguir o máximo
de glamour nos nossos movimentos de quadril. Desde então eu me estiquei e me
tornei uma espécie de nazista dos joelhos, como qualquer uma que já fez aula
comigo pode confirmar. :)
Eu mal havia trocado a minha técnica desleixada por um
vocabulário egípcio, e eu já conheci o meu próximo desafio: diminuir o ritmo.
Bailarinas não-egípcias têm a tendência de fazer muita coisa rápido demais. Se
nós não colocarmos todos os movimentos que a gente conhece numa só música, se não
acertarmos todo tik e tek, dum e tak, nós sentimos que não fizemos jus à
música. O que não é necessariamente o caso. E como diz o bom e velho clichê,
menos é mais. Diminuir o ritmo é provavelmente O melhor conselho que eu ouvi em
todos os meus anos por aqui, e ele veio de ninguém menos que Sara Farouk, um
dos segredos mais bem guardados do Cairo. :) Sara é a organizadora do Curso
Intensivo Randa Kamel, que é realizado duas vezes por ano no Cairo. Mas mais do
isso, ela é uma das melhores professoras de dança do ventre do mundo, e uma boa
amiga. Ela é ótima em ver todos os seus defeitos na dança e corrigi-los. Então
hoje, toda vez que entro no palco, eu penso na Sara e faço questão de diminuir
o ritmo e sentir, não importa o que
eu esteja fazendo.
O Show
Esses foram alguns dos ajustes técnicos que eu precisei
fazer como uma estudante reaprendendo a dançar no Egito. Mas quando eu
finalmente subi num palco, eu tinha milhares de outras coisas para pensar como
bailarina. Para começar, os shows aqui são mais longos. Uma apresentação típica
de dança do ventre em qualquer hotel, barco ou casamento dura algo entre 45
minutos e uma hora. Eles não são os
shows de 15 ou 20 minutos que se faz nos EUA com apenas uma roupa. E cada show
é divido em 2 ou 5 sessões, dependendo do tipo de show que é oferecido no
local. A bailarina muda de roupa para cada sessão, e dança algum subgênero
diferente de música egípcia. Por exemplo, na primeira parte, a bailarina
normalmente vai dançar um mejance
instrumental, que é como os egípcios chamam a introdução, e 1 ou 2 músicas
clássicas. Isso dura em torno de 10
a 20 minutos. Então ela muda de roupa e dança a segunda
parte do show por mais 10 ou 20 minutos. Normalmente, a segunda parte inclui
algum tipo de folclore e música shaabi. Se for Saidi, Iskanderani (N.T.: o
mesmo que Meleya Leff), Núbia ou Khaleege, a bailarina se veste
apropriadamente. Para a terceira parte, a bailarina usa outra roupa de dança do
ventre e continua com algo como sharqi, baladi, e um solo de derbake. Alguns
shows realmente escapam desse formato, mas geralmente esse é o formato padrão
de um show de dança do ventre no Egito.
Como os shows são mais longos e completos, eu realmente
precisei dar uma retocada em todos os tipos de folclore – eu não podia contar
com toda a (con)fusão que aprendi em casa para encher o show, porque coisas
como véus wings, leques de seda, espadas e bandejas com velas simplesmente não
pegam bem aqui. O público egípcio quer ver você dançar, e não fazer um número
de circo. O que foi um alívio para mim, já que eu nunca realmente gostei de trabalhar
com elementos supérfluos.
Música
A seleção musical foi outro problema para mim. Já que a
comunidade do Oriente Médio em
Nova Iorque é muito diversificada, eu podia muito bem dançar
música egípcia, libanesa, síria e turca num só show. No Egito, entretanto, o
gosto das pessoas para música é, bem, egípcio. :) A não ser que seja George
Wassouf (N.T.:cantor sírio conhecido como o Sultão do Tarab) ou Melhem Barakat
(N.T.: cantor libanês muito famoso), eu aprendi a não sair muito dos
tradicionais clássicos egípcios que todos os egípcios conhecem e amam. Eu
também aprendi que eu realmente preciso conhecer as letras das músicas que
estou dançando. Não para brincar de mímica enquanto estou no palco, mas para
estar emocionalmente envolvida com o que quer que eu esteja dançando.
Aparência Física
Fisicamente eu também passei por algumas mudanças... para
melhor, gosto de pensar assim. :) Pelos primeiros dois anos que morei aqui, eu
era muito magra-doente. Você podia ver minhas costelas, e eu não tinha bunda. O
que é estranho, porque eu sempre fui mais para redondinha. Não é que eu
estivesse de dieta ou fazendo exercícios demais. Mas eu estava, entretanto,
passando por um grande estresse mental. Entre os ajustes a uma nova cultura e
lidando constantemente com tipos egoístas e narcisistas, eu entrei numa onda
depressiva que afetou não só o meu peso, mas toda a minha forma de ver a vida.
Por sorte, consegui me firmar e fazer as mudanças que eu precisava para
resgatar a minha saúde (física e mental), felicidade, sanidade e meus quadris. :) Sem mencionar meu
velho e grande bumbum...
... que tem tido dificuldade em entrar nas roupas hoje em
dia (graças a Deus eu vivo num raio de 5 quilômetros da Eman
Zaki, e posso ter as coisas customizadas!). Acho que qualquer outra mulher
estaria enlouquecendo se ela ganhasse os 11 quilos que eu ganhei desde que me
mudei para cá. Mas eu não. Tenho orgulho deles. E eles me fazem bem no palco.
Eu meio que gosto do jeito como cada movimento brusco que eu faço tem sempre um
shimmy não intencional de eco. :P Sem mencionar que os egípcios gostam de um
pouco mais de carne. Então tudo funciona. :)
O que me leva para o meu próximo ponto. As bailarinas aqui
são encorajadas a escolher as roupas que valorizem e mostrem mais as suas
curvas. Isso significa saias apertadinhas de lycra, que mostram cada buraquinho
e depósito de celulite nas suas coxas e bumbum. Sexy. :) As roupas mais
tradicionais de chiffon, cinturão e bustiê foram pelo mesmo caminho que os dinossauros.
Ninguém os usa por aqui. Nunca. Ninguém usa franjas também. Tudo isso veio como
um choque para mim quando eu cheguei, porque a maioria de nós usa os
tradicionais bedlahs nos EUA. Com
exceção da parte das franjas, eu comecei a gostar das roupas mais modernas,
mesmo que elas definam os buraquinhos das minhas coxas de vez em quando. Porque , com
lycra, as possibilidades são infinitas. Desde lycra com estampa de jornal até
spandex cheios de lantejoulas, os tecidos strech expandiram a nossa imaginação
ao extremo. E é por isso que fazer compras de tecidos se tornou uma coisa
regular na minha rotina semanal. E é por isso que hoje eu tenho mais de 30
pedaços de tecido, todos aguardando para serem transformados em lindas roupas.
Atitude
Além de todas as modificações que eu fiz na técnica, seleção
musical, e roupas, o maior ajuste que eu fiz (e ainda estou fazendo!) é um de
consciência. Eu não pratico mais dança do ventre. Eu sou uma bailarina de dança
do ventre. Quer dizer, dança do ventre não só um hobby que eu faço nos finais
de semana e ganho uma grana extra. Agora é o meu trabalho em período integral,
e é ele que paga as contas.
Eu também não sou mais uma produção de apenas uma mulher,
como costumava ser em Nova Iorque. Em
casa, eu iria para os meus shows, de CD na mão, pronta para me sacudir por 15
minutos e sair correndo para fazer a mesma coisa no próximo restaurante. Eu, eu
mesma, e eu. Aqui, eu faço parte de uma equipe maior de músicos, gerentes,
agentes e bailarinos... você sabe aqueles 2 a 4 caras que fazem aqueles movimentos sem
graça tipo YMCA no início de qualquer show de dança do ventre? :P Eles também
dividem o palco comigo quando eu danço qualquer tipo de folclore. E como nós
interagimos quando dançamos Saidi ou Alexandrian, na verdade eu tenho que
marcar ensaios com eles de tempos em tempos. O que é sempre divertido e engraçado. :D
Apesar de, tecnicamente, eu pertencer a uma equipe (i.e. uma
banda), aqui o conceito de trabalho em equipe não se aplica exatamente da mesma
forma como fora do Egito. Por exemplo, as bailarinas egípcias vêem (e
freqüentemente tratam) os músicos como inferiores, não como iguais. São ferramentas.
Bailarinas estrangeiras são ensinadas a agir da mesma forma. Interações
desnecessárias com a banda são altamente desencorajadas, o que significa que
não há camaradagem entre colegas de trabalho – mesmo que a gente se veja todo
dia. Tenho certeza que a situação de cada bailarina varia um pouco, e há exemplos de bailarinas que quebram
“as regras”, mas normalmente essa é a dinâmica entre a banda e a bailarina.
Pessoalmente, eu tento manter as coisas menos formais e mais humanas, mas nem
sempre isso funciona.
As relações entre as bailarinas aqui é igualmente não
amigável. Novamente, há exceções, mas na maior parte das vezes não há
“irmandade” entre bailarinas de dança do ventre como temos nos EUA. Isso porque
há menos trabalho do que há bailarinas, então elas tendem a ver umas as outras
como competidoras, não amigas. Apesar das bailarinas do mundo inteiro estarem
competindo por um número limitado de trabalhos, a situação não parece ser tão olho
por olho dente por dente como é no Egito. Em Nova Iorque , por
exemplo, praticamente todas as bailarinas eram (e ainda são) amigas. Nós
sairíamos juntas, trabalharíamos juntas, sairíamos para beber juntas, faríamos
aulas juntas, etc. Aqui, as bailarinas geralmente se evitam. Se elas interagem, normalmente é de uma
forma negativa, destrutiva, como dedurar uma a outra para a polícia da dança do
ventre, ou roubar as roupas umas das outras, por acaso ambas as situações já
aconteceram comigo. É muito triste, dado que nós temos tanto em comum, mas eu
fui avisada disso quando cheguei ao Egito. Mesmo que eu não tivesse a intenção
de me apresentar, meus professores egípcios sempre me diziam para evitar fazer
amizade com bailarinas. Eu vejo a sabedoria nisso, mesmo assim há algumas
bailarinas que eu respeito e admiro muito, e por isso me mantenho em termos
amigáveis. No final, eu não posso pautar toda a minha vida pelas regras.
O fato de eu ser contratada significa que o meu trabalho me
impõe algumas responsabilidades. Assim como qualquer outro trabalho “normal”.
Por exemplo, não importa o quão doente eu esteja, eu não posso simplesmente não
ir trabalhar. Ou mandar uma substituta e esperar que eles gostem dela. E eu
tenho que freqüentemente renovar o meu guarda-roupa. Em suma, eu preciso estar
no meu auge. Porque no Egito, a bailarina é a razão da noitada. Os egípcios e
os turistas vão aos locais de show de dança do ventre especificamente para ver
a bailarina. Não é como nos EUA, onde os clientes freqüentam os restaurantes
para comer, e oh por acaso tem dança do ventre. Quando você é uma bailarina
por-acaso-tem-dança-do-ventre, você pode se dar bem sem dar o seu melhor,
porque o seu público está normalmente mais interessado no frango no prato dele.
Aqui, todos os olhos estão na bailarina por toda a duração do show dela. Então
há muito mais pressão para que ela dê o seu melhor (isso assumindo que ela liga
pra isso). No final, entretanto, isso é muito gratificante. Tanto os egípcios
como os turistas apreciam demais um bom show. De fato, é muito comum que
algumas pessoas do público tratem as boas bailarinas como celebridades,
correndo atrás delas antes que elas desapareçam no camarim, implorando para
tirar fotos com elas, beijando-as ou contratando-as para o casamento de não sei
quem.
Eu nunca vou me esquecer do meu primeiro show aqui no Egito
há 2 anos atrás. Foi num resort remoto do Mar Vermelho, a duas horas do Cairo.
Antes que eu pudesse terminar de agradecer o público, quase todos estavam no
palco comigo – crianças, pais, mães – beijando minhas bochechas suadas e me
puxando para tirar foto com eles. Eu nunca tinha visto um público reagir a uma
bailarina de dança do ventre desse jeito. Eu fiquei estupefata com tanto amor.
Primeiramente, eu achei que era aquele público específico que era tão caloroso,
mas quanto mais eu me apresentava, mais eu encontrava reações similares. E já
ouvi outras bailarinas populares no Cairo contarem de experiências parecidas. O
que significa que os egípcios realmente
apreciam um bom show. :)
Quando as pessoas me perguntam o que tem me segurado no
Cairo por todo esse tempo, eu respondo: ISSO. Saber que eu fiz as pessoas
felizes com a minha arte. Saber que a minha arte é verdadeiramente apreciada
pelo público. Porque além de públicos maravilhosos, praticamente tudo que vem
junto com ser uma bailarina no Cairo é pura maldade. Sem dúvida, um dos
mistérios do universo é como uma artista que pode fazer tanta gente feliz pode
ser considerada o equivalente a uma prostituta que vai para o inferno se ela
não se arrepender dos seus pecados antes de morrer. É algo de f@der os
neurônios, vou te contar... se sentir como uma pecadora e uma celebridade ao
mesmo tempo.
Mas uma coisa é certa: eu não sou nem pecadora nem
celebridade. Mas eu aprendi a aceitar que outras pessoas me vejam dessa forma.
Mas mais importante, eu sou uma bailarina diferente do que eu era em Nova Iorque. E
uma bailarina diferente do que eu serei em 2 anos. Porque cada noite no palco é
um aprendizado, tanto como uma dádiva.
Emocionante!
ResponderExcluirJá tinha lido o original, mas tê-lo tb traduzido e disponível para além é muito legal, dá até para pensar mais a fundo a dança também, aqui e lá...
ResponderExcluirAdoro este artigo, muito interessante sobre a questão de pensar a dança aqui e lá, como é executada, a percepção que um artista deve ter de sua arte/profissão.
ResponderExcluirAdorei esse artigo dela, muito bonito!
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