Domingo, 9 de setembro, 2012
Por Luna do Cairo
Eu sempre sou pega desprevenida por toda bailarina que me
diz que eu estou “vivendo o sonho”. Toda vez que escuto isso tenho vontade de
perguntar, sério? Que sonho? Eu nunca sonhei em ser uma bailarina de dança do
ventre no Cairo. Eu nem sabia que isso era possível! =D
Verdade seja dita, eu não vim para o Egito com o objetivo de
ser uma “estrela”, ou porque alguém inflou o meu ego com mentiras. Eu vim para
o Egito porque estava com o coração partido. Eu não tinha terminado com um
namorado nem nada do gênero. Mas alguns anos antes, em 2006, eu vi algo que eu
realmente queria e achava que não poderia ter. Eu vi a verdadeira dança do
ventre egípcia num festival no Cairo, e eu queria desesperadamente aprende-la.
Como atingir esse nível de excelência na dança requer muitos anos de vida no
Cairo, decidi que era impossível e fiquei deprimida.
Acabou que eu estava errada. Afinal, eu tenho vivido no
Cairo há 4 anos. Mesmo assim, na época, se você tivesse me dito que isso iria
acontecer, eu teria respondido que eu também acredito na fada do dente. Eu
tinha acabado de entrar em Harvard, e passaria os dois anos seguintes da minha
vida ali, e depois arranjaria um emprego e teria filhos. Eu não conseguia
imaginar interromper o curso natural das coisas para encaixar o Egito. Nem
conseguia imaginar a logística necessária para empreender tal esforço. Como eu
chegaria lá? Onde eu ficaria? Quem iria me contratar para que eu trabalhasse
para pagar o aluguel e todas as aulas de dança? Incertezas demais, muitas
dificuldades, sem ter dinheiro.
Até que um dia, as coisas começaram a se encaixar. Enquanto
eu estava em Harvard, eu tive a brilhante idéia de concorrer a uma bolsa
Fulbright para estudar no Egito. Eu iria pesquisar sobre Dança Oriental
ganhando um salário por 9 meses. Eu sabia que fazer com que State Department
americano financiasse uma pesquisa sobre dança do ventre era um tiro no escuro,
mas cheguei à conclusão que eu não perderia nada tentando. Então eu tentei.
Para minha surpresa, eu ganhei uma bolsa. Aparentemente, o comitê da Fulbright
estava interessado na minha hipótese de que a islamização mais a estagnação
econômica estava causando uma decadência cultural, e que isso estava
penalizando as artes performáticas.
Naquele verão, eu me formei em Harvard e me preparei para me
mudar para o Egito. Eu pouco sabia que o meu humilde desejo de aprender a
dançar iria eventualmente gerar uma carreira profissional como bailarina de
dança do ventre no Cairo.
Após uns 6 meses na minha nova vida no Egito, me foi
oferecida a oportunidade de dançar num resort no Mar Vermelho, a duas horas do
Cairo. O pagamento era ruim, a viagem de carro era perigosa e de embrulhar o
estômago. E o que era pior, eu me sentia intimidada de fazer um show de uma
hora para um público egípcio. Eu não sabia que músicas dançar, e não me sentia
confortável em improvisar. As roupas que eu tinha eram duas que eu não gostava
muito. Em outras palavras, eu estava completamente despreparada. Ainda assim
agarrei a oportunidade porque, bem, eu nunca recuso uma. Mesmo que eu não
esteja preparada para ela. Eu aprendi que oportunidades só aparecem uma vez na
vida – sejam elas de amor, trabalho, ou o que quer que seja. Talvez os ricos
possam comprar as deles, mas nós, reles mortais, precisamos agarrá-las quando
elas aparecem. E fico feliz que eu tenha feito isso. Apesar da minha sensação
de incapacidade naquela noite, eu recebi as boas-vindas mais calorosas que uma
bailarina pode desejar. Sem dúvida, foi mais do que umas boas-vindas ao palco.
Foi uma recepção ao que seria a minha futura carreira, e uma que eu nunca vou
esquecer.
Depois de quase dois anos dançando na maioria dos resorts do
Mar Vermelho, um jovem dervixe rodopiante que dançava entre os meus shows me
perguntou se eu queria fazer um teste no Memphis, um cruzeiro no Nilo onde ele
trabalhava. Legalmente falando, eu não poderia ter colocado nem o pé naquele
barco. Eu já havia sido contratada no Semíramis, e a lei egípcia proíbe que
bailarinas estrangeiras trabalhem em mais de um lugar. Mesmo assim eu aceitei a
oferta dele e fiz o teste. Uma combinação do meu sexto sentido mais o fato de
que eu nunca tinha dançado no Semíramis (essa era a razão) me fez aceitar.
Para a minha alegria, eu passei no teste. Na mesma noite, o
gerente me pediu para trabalhar a noite toda, todas as noites. Eu expliquei que
fazer isso seria ilegal – que o máximo que eu me permitiria fazer era dançar
duas noites por semana, e que isso seria muito generoso da minha parte. Mas
quanto mais eu recusava, mais eles insistiam que conseguiriam a minha permissão
legal para dançar se eu saísse do Semíramis. Eu agradeci pela oferta, mas
recusei. Em primeiro lugar, eu não acreditava que eles fossem cumprir o
prometido. Aqui é tudo da boca pra fora, e as promessas são vazias. Eu não iria
cancelar a minha permissão com o Semíramis (mesmo que eu não estivesse
dançando) na esperança de que um gerente de um cruzeiro iria honrar as suas
promessas. Em segundo lugar, tinha o fator nome/prestígio. Não tem como
conseguir nada melhor do que o Semíramis aqui (mesmo sem estar dançando). Me
“rebaixar” a um cruzeiro no Nilo seria impensável, e um grande golpe na minha
carreira no Egito.
Um mês depois, o momento que o cruzeiro esperava chegou. O
gerente do Semíramis cancelou o meu contrato de trabalho e direito a
residência, me deixando completamente desamparada. Nós brigamos seriamente porque
ele ignorou os meus pedidos para viajar para casa por conta de uma morte na
minha família. Então ele me despediu.
Não posso negar. Aquele cruzeiro no Nilo não parecia tão
ruim depois dessa experiência horrorosa. Eu informei ao gerente do cruzeiro que
o sonho dele tinha se tornado realidade – que eu tinha sido despedida do
Semíramis – e que agora estava disponível. Ouvindo essa notícia, o gerente
geral do cruzeiro não perdeu tempo em me contratar. Ele já tinha percebido um
aumento nos lucros depois de apenas um mês em que eu estava dançando lá, por isso
não queria me perder para a polícia da dança do ventre ou para outro
estabelecimento. Na verdade, ele não só me contratou como entrou com um pedido
de licença para que o cruzeiro pudesse contratar bailarinas estrangeiras, um
passo que tomou muito tempo e dinheiro. Desde então, eu tenho dançado lá toda
noite com a minha banda – não só no cruzeiro, mas também em casamentos e outros
tipos de festa. Também já apareci na TV egípcia como solista e em clipes
musicais. No que diz respeito a isso, a minha vida realmente tem sido um sonho.
Também tem sido um sonho o fato de que eu aprendi a dançar
do jeito que eu sempre quis aprender. Isso não teria acontecido se eu não
tivesse conseguido a permissão legal para dançar. Claro, aulas são importantes.
Mas não há nada como o palco e um punhado de músicos toda noite para te ensinar
a dançar. Tem algo na espontaneidade de tudo isso, na interação com o público
egípcio, que te dá um bom entendimento da música e do sentimento dessa dança.
As performances constantes também me mantêm sob pressão. Eu tenho um público
cativo, assim como agentes com quem trabalho com freqüência, então tenho que
estar sempre apresentando coisas novas. Além disso, eu enjôo rápido. Isso
significa que estou sempre pensando em novas montagens e novas roupas. É
divertido, mas dá muito trabalho. Se não estou ensaiando com a minha banda,
estou procurando novos materiais ou desenhando e comprando novas roupas. É
realmente um trabalho de tempo integral, e eu tenho muita sorte de poder
dedicar todo o meu tempo a isso.
Apesar do aspecto fantasioso do meu trabalho como bailarina
de dança do ventre no Cairo, eu acho que é importante colocar as coisas sob
perspectiva. O fato de eu ter conseguido um emprego fixo aqui foi um golpe de
sorte. Alguns podem dizer que foi destino. Eu não sabia nem que o Memphis existia
nem pedi para fazer o teste. E o fato deles quererem me contratar de verdade
foi algo fora do padrão. A maioria dos lugares não são generosos a ponto de
fazer contratos com bailarinas estrangeiras, muito menos pagando todas as taxas
necessárias para isso. E ainda por cima, essa oportunidade veio depois de dois
anos de só seguir o fluxo – e não procurando
por uma oportunidade para dançar, mas aceitando aquelas que apareciam para mim.
Também veio depois de dois anos de sofrimento e de desilusão. Apesar de eu
nunca ter intencionado trabalhar no Egito, era exatamente isso que estava
acontecendo. E isso estava se tornando uma fonte de brigas na maioria dos meus
relacionamentos pessoais e profissionais. Então, ao mesmo tempo em que percebo
que o desenrolar da minha carreira tem um final de conto de fadas (ou início,
dependendo de como você vê), eu ainda acho que as pessoas se enganam um pouco
quando dizem que estou “vivendo o sonho”.
Verdade seja dita, esse sonho vira pesadelo mais
frequentemente do que eu gostaria de admitir. Apesar de todas as vantagens,
dançar no Cairo requer muito trabalho duro. Na verdade, reparei que o trabalho
duro vem na mesma proporção que a satisfação e o sucesso que você atinge. Para
começar, eu me tornei muito defensiva. Tem sempre um monte de gente no meio
tentando tirar vantagem em cima de você, seja pelo dinheiro ou pelo sexo. Não
acontece sempre, mas é freqüente o suficiente para que o meu modo padrão de
lidar com as pessoas seja na defensiva. Especialmente com aqueles que eu ainda
não tenho uma relação de confiança profissional. Para mim, todos são culpados
até que se provem inocentes.
Além disso, tem as questões legais. A “polícia da dança do
ventre”, ou musanafat e adab para ser exata. São eles que
regulam as licenças, e garantem que você não está “indecente” na sua dança ou
na sua roupa. Quando esses caras pegam no seu pé, a coisa pode ficar feia. As
penalidades incluem multas, prisão e deportação para estrangeiras, e dependem de
diversos fatores. A violação que você cometeu é um deles. Dançar sem cobrir a
barriga é uma violação menos grave do que dançar ilegalmente. Dançar sem cobrir
a barriga e ilegalmente é muito pior.
:) Se a polícia foi chamada ou não por outra bailarina com ciúmes é outro
fator. Se esse for o caso, você pode ser perdoada ou punida severamente por
suas violações reais ou empíricas. Isso vai depender do tipo de relacionamento
entre o policial e a bailarina que o enviou, claro. :)
Num outro nível, se adaptar à cultura requer lidar com
alguns desafios. Alguns conceitos culturais e religiosos pré-definidos sobre a
mulher não combinam comigo. Nem os restritos códigos não-oficiais de conduta e
vestuário. Sem mencionar o constante assédio sexual. Isso pode ser massacrante.
Ter que estar o tempo todo se cobrindo, mesmo quando está um calor insuportável
do lado de fora, ter que esconder a minha profissão de todos para não ser
expulsa do meu apartamento (o que já me aconteceu antes), não poder me
expressar livremente – todas essas coisas podem ser extremamente irritantes.
Sob todas as condições que descrevi, você poderia imaginar
que uma comunidade de dança acolhedora seria o meio ideal para se apoiar. Mas,
infelizmente, esse não é o caso. Apesar de haver aquelas almas verdadeiras que
eu amo como se fossem minha família, a comunidade em geral é a antítese de
acolhedora. Você descobre que conforme vai subindo na carreira, fofocas
difamatórias e falsas acusações começam a proliferar. Muitos ou inventam
fofocas sobre o que você fez para conseguir o seu emprego, ou se mostram muito
inclinados em acreditar nas piores histórias sobre você. Alguns até tentam
destruir a sua carreira. Todo mundo ama um Zé-ninguém. Mas poucos gostam
realmente de alguém. E é por isso que você não sabe quem são seus verdadeiros
amigos até que coisas boas aconteçam para você. Juro que parece que você está
novamente na escola. Só que dessa vez eu já sei como me erguer e me manter
acima dessas coisas de um jeito que eu não sabia aos 15 anos de idade. Não
importa o que você diga ou faça, não importa como você dança, sempre vai ter
alguém te odiando, criticando, ridicularizando e te colocando para baixo. Então
você chega num ponto em que simplesmente para de se importar – um ponto no qual
você se sente livre para ser quem você é sem se preocupar com o que os outros
pensam. Pode parecer desagradável, mas também é libertador.
Contudo, não é sobre isso que quero falar. Isso vem com o
pacote de dançar no Egito, e na verdade tem sido uma fonte para o meu crescimento
pessoal. Pessoalmente, eu acho que o meu maior desafio não é nem a cultura nem
o ambiente pouco amigável da dança. É algo mais interno do que isso. É algo que
eu gosto de chamar de síndrome do “e se”. Eu amo o meu trabalho e sei o quão
sortuda eu sou por tê-lo. Mas o questionamento do e se eu tivesse feito
diferente me atormenta. Quer dizer, vamos encarar a verdade. Uma mulher comum
não faria as decisões que eu fiz na vida. Uma pessoa comum não se desviaria tanto da estrada testada e aprovada
para o sucesso para seguir um sonho vago de aprender a dançar num país do
terceiro mundo. E apesar de muitas pessoas me louvarem por isso, talvez haja
uma razão pela qual a estrada menos percorrida é menos percorrida. Levar uma
vida não-convencional pode ser divertido, mas significa se colocar numa vida
feita de incertezas e improvisos. E não quero dizer que isso acontece no palco.
Eu não tenho mais uma “coreografia” para a vida como costumava ter. Eu
abandonei isso quatro anos atrás. Eu troquei os ensaios pela “vida real”. Estou
apenas vivendo a vida, um dia de cada vez. Boêmia. Certamente não é a vida que
imaginei para mim mesma. E muito assustadora.
Hoje em dia, com todo o sofrimento que acontece no mundo,
começo a me sentir culpada por ter o trabalho dos meus sonhos. Tem gente
lutando para conseguir colocar comida na mesa, e pessoas pelo mundo todo dando
as suas vidas pela liberdade. Uma delas era amiga minha, e fez isso
recentemente na Síria. E aqui estou eu, dançando. Celebrando. O quê, eu não
sei. Mas as pessoas dizem que dança é celebração. Então isso começa a parecer
errado. Um pouco egoísta... Sem sentido... Vazio.
O que quer que seja que eu estou passando, espero
sinceramente que seja temporário, e que eu saia dessa. Me esforcei demais em
lançar a minha carreira só para desistir porque acho que dançar é “haram”, apesar de ser por motivos
próprios. (Engraçado eu ter mais medo de mim mesma do que da Irmandade
Muçulmana proibir a dança!) Se não for mais nada, a forma como estou me
sentindo é a prova de que estou vivendo um sonho. Talvez não “O” sonho, mas um
sonho num sentido de que tudo o que acontece, seja bom ou ruim, é maior do que
a vida. E nos dá essa sensação de irrealidade. Lá no fundo, tem uma parte de
mim que gosta disso. Talvez seja por isso que estou rezando para não acordar
tão cedo.
Muito bom mesmo!
ResponderExcluirÉ bem por aí :-/
Gratíssima pelas traduções, muita Luz e Prosperidade sempre :-*
Nossa, muito bom!
ResponderExcluirGratíssima pela tradução, Luz e Prosperidade sempre :-*