sexta-feira, 3 de maio de 2013

Kisses from Kairo - Sentimentos sobre Sentimento




Sábado, 4 de agosto de 2012


Por Luna do Cairo
Traduzido por Lalitha   


Vamos encarar. Nós, bailarinas estrangeiras, somos muito pressionadas. Nós não só temos que ser lindas, mas temos que dançar da forma mais egípcia possível. Algumas chegam mais perto do que outras, mas nenhuma de nós chega na casa dos 100%. Pessoalmente, eu acho que é impossível. Ser egípcia é uma dessas coisas com a qual ou você nasce com ou sem. Não importa o quanto você faça imersão na cultura ou quão bem você fale o árabe, nunca seremos tão egípcias quanto as egípcias. E, claro, nunca seremos mais egípcias do que uma. :) Não que ser egípcia seja o objetivo, ou que não ser seja o fim do mundo. Nossa “desvantagem”, no entanto, é sermos sempre comparadas às bailarinas egípcias. E um dos pontos de comparação é o sentimento.

“Sentimento” é uma dessas palavras que não tem um significado real. Mesmo assim, a usamos o tempo todo para se referir a um conceito vago do que é egípcio na dança. Não podemos definir exatamente o que é; é a parte da dança que não pode ser definida, quantificada, calculada ou ensinada. Mas de alguma forma, nós reconhecemos quando vemos. Ainda mais interessante, sentimento é o que muitas bailarinas egípcias (dizem que) têm, e que nós, não-egípcias, nos esforçamos por obter.

Dado que sentimento é um conceito tão vago, achei que seria divertido fazer uma lista das minhas idéias sobre isso – sobre o que é, e o que não é. Mantenham em mente que essas são as minhas idéias subjetivas baseadas na experiência e na observação. Elas são, portanto, discutíveis. Existe mais de uma forma certa de entender as coisas, então você não precisa concordar com tudo o que eu escrevo. E isso não significa que uma de nós está errada.

Quando os egípcios falam de sentimento, eles frequentemente afirmam que é o falta às bailarinas estrangeiras. Eles dizem que nós temos uma técnica ótima, mas que nossa dança é mecânica e chata. Eles acham que muitas de nós não têm essa essência – esse espírito característico da dança oriental. Eles não sabem se é porque nós não entendemos as letras ou a instrumentalidade árabes, ou porque não somos egípcias. Enquanto não concordamos que falta sentimento a todas, eu acredito que para muitas de nós é um pouco das duas coisas.

O sentimento surge quando uma bailarina educada está fisicamente, intelectualmente, e emocionalmente em sintonia com a música, e consegue transmitir isso para o público. Eu frisei o educada porque essa conexão só acontece quando nós adquirimos um conhecimento profundo sobre a dança. Quando dominamos a técnica, entendemos a instrumentalidade árabe, e compreendemos a letra da música. Quando sabemos que tipos de movimentos combinam com cada instrumento. Quando nos tornamos intimamente familiarizadas com as origens culturais da dança. Quando conhecemos todas as regras e sabemos quando podemos quebrá-las. Quando alcançamos esse nível de conhecimento, isso se reflete na nossa dança. Mas o que é isso exatamente?

Para mim, sentimento é, antes de qualquer coisa, a forma como a bailarina executa os movimentos. Uma questão de estilo, se você quiser colocar assim. Dependendo da energia por trás, um movimento pode parecer turco, egípcio, tipo hip-hop, ou parecido com nada. Exatamente o mesmo movimento, com ênfase diferente, logo um sentimento diferente. É como se fosse um sotaque, se pensarmos em línguas estrangeiras. Nos Estados Unidos, por exemplo, nos lugares onde há muitos imigrantes não é incomum escutarmos algumas palavras carregadas em sotaque indiano, latino ou asiático. Apesar de todos falarmos a mesma língua, o inglês de cada grupo étnico tem um som distinto, ou um sentimento. E isso não é uma coisa ruim.

O mesmo se aplica à dança. Quando eu comecei a fazer aulas em Nova Iorque, uma das minhas professoras me disse que a minha dança não parecia (i.e. não tinha o “sentimento”) do Oriente Médio (pensando agora, nem a dela :P). Claro, eu estava fazendo todos os movimentos corretamente, mas a forma como eu fazia os movimentos não era muito oriental, muito menos egípcia. Os meus braços, que eu mantinha extremamente estendidos, estavam mais apropriados para direcionamento do trânsito do que para a dança do ventre. Meus movimentos de quadril eram tão grandes, perfeitos e violentos que eles pareceriam mais de hip-hop do que de dança do ventre. Vale dizer que eu tinha estudado no passado um pouco de hip-hop e de jazz, então era daí que vinha o “sotaque” com o qual eu falava a língua da dança egípcia. Desde então eu aprendi a ser mais suave e fazer os meus movimentos menores. Livrei-me do meu sotaque, por assim dizer. :) E eu aprendi que os movimentos de quadril não precisam ser tão prefeitos ao ponto de parecerem robóticos.

O sentimento é mais do que uma questão de estilo, entretanto. Parte do que queremos dizer quando dizemos que uma bailarina dança com sentimento é que ela interpreta corretamente uma música. Em outras palavras, que ela tem um bom ouvido. Ela sabe combinar os movimentos com os instrumentos. Ela sabe que o acordeom, por exemplo, pede que ela faça movimentos sinuosos, como oitos e ondulações. E que o derbake obviamente pede movimentos mais percussivos. Mais importante, ela sabe o que fazer quando tem diversos instrumentos tocando ao mesmo tempo... como, por exemplo, o ritmo se acelera durante um solo de acordeom. Uma bailarina com uma boa percepção vai saber quando ignorar o derbake, quando ignorar o acordeom, e quando se utilizar de ambos. E isso é algo que vem com a experiência.

Tem outro aspecto nessa história toda de sentimento que eu quero mencionar, principalmente porque parece haver todo um desentendimento sobre o assunto. EMOÇÃO. Como todos já puderam reparar, é muito comum para as bailarinas egípcias de hoje em dia transmitirem a emoção das letras com expressões faciais e gestos com as mãos. Também é muito comum que as estrangeiras as imitem. Às vezes funciona. Mas é muito frequente, já que a maioria das bailarinas não-egípcias não entende as letras em árabe sem uma tradução, que a imitação delas seja exatamente isso – uma imitação. E pode parecer falso e exagerado.

Eu tenho reparado muito nisso recentemente, quanto mais eu tenho dado workshops fora do Egito e visto performances das alunas. Esse é um problema que as bailarinas têm em qualquer lugar, mas especialmente na Europa, onde a cultura da dança do ventre é muito competitiva. Em qualquer final de semana, você pode encontrar competições acontecendo por todo o continente. Isso resulta em bailarinas lutando para se sobrepor às outras de qualquer forma. E uma das formas de fazer isso é fazendo expressões extremamente exageradas de alegria, dor ou qualquer outra emoção que as letras estejam transmitindo. Ou fazendo gestos extremamente exagerados. É como se elas achassem que vão acertar no “sentimento” desse jeito.

Esse é o problema. Existe uma diferença entre sentimento e atuação. Sentimento se trata principalmente de interpretação musical. E apesar de às vezes incluir a expressão da emoção, não se trata de fazer mímicas no palco, ou sobre provar para o público (ou a banca) que você entende árabe. Enquanto é sempre bom conhecer a letra ou até mesmo cantar junto se você conseguir, fazer caretas durante toda a música para provar que você entende árabe é desnecessário. Fazer demais de uma coisa boa é ruim.

Tem uma performance que eu nunca vou esquecer. Foi de uma bailarina européia num festival egípcio há alguns anos atrás. A moça estava dançando uma música sobre amor não correspondido, e ficava fazendo repetidamente movimentos violentos de esfaquear... como se ela estivesse se apunhalando nos quadris e no coração. Ela então se jogou no palco e bateu no chão com a mão ao som da palavra “bahibak”, que significa “eu te amo”. Ela definitivamente me deixou impressionada, mas pelas razões erradas. Eu me senti como se tivesse sido atacada – como se ela tivesse me forçado a sentir o que ela estava sentindo. Uma coisa é expressar a emoção da música. Outra coisa é subir no palco e FORÇAR AS PESSOAS A SENTIR CARAMBA! Que era exatamente o que ela estava fazendo. :)

Eu já vi muitas performances assim. E eu saio delas pensando, se ela tivesse reduzido uns 50%, dançado mais e atuado menos, ela teria sido convincente.

A cultura da competição não é a única culpada pela atuação exagerada. Alguns professores de dança egípcios muito famosos também têm culpa. Nos últimos anos, tem havido uma tendência cada vez maior de vários professores egípcios de influência de fazerem caras e bocas durante toda a música. Isso está acontecendo porque eles têm escolhido músicas pops mais novas que tem composição e instrumentação inferiores aos clássicos mais antigos, e que não deveriam ser dançadas! Porque essas músicas não têm nenhuma complexidade musical, não tem mudança de ritmo, não têm instrumentos de corda, a única coisa que dá para fazer é seguir as letras com mímicas e caras e bocas.

É triste que isso esteja se tornando tão comum. Mas parece ser o resultado da preguiça e da falta de cuidado que surgem quando professores estrelas se voltam exclusivamente para o comércio. Quando isso acontece, eles param de pensar e de se esforçar na arte. Eles simplesmente pegam o último sucesso pop, fazem uma coreografia mais ou menos cheia de caras e bocas, e ensinam em workshops por todo o mundo. E então chamam isso de “sentimento”. Não é à toa que todos nós começamos a fazer caretas! Não só estamos imitando as bailarinas egípcias, mas estamos sendo ensinadas a fazer isso por professores egípcios que passamos a respeitar e admirar!

Então, apenas para deixar claro: só porque uma música é nova ou rápida, não quer dizer que ela deva ser dançada. E não é porque alguém que sabe mais do que você está apresentando um lixo, que devemos aceitar cegamente. Mas é exatamente isso que está acontecendo. Justamente porque muitas de nós, compreensivelmente, acreditam que qualquer coisa que um egípcio faça está certa, é que nós estamos seguindo essa tendência e levando a novos extremos. Que, é o que eu queria dizer, não é a definição de sentimento.

Do lado oposto do espectro, estão aquelas egípcias que sentem sim – talvez um pouco demais. :) Na verdade, às vezes elas sentem a emoção da música de forma tão intensa que elas esquecem de dançar! Elas cantam e gritam e fazem gestos enlouquecidos e jogam um shimmie aqui e outro ali... eu juro que às vezes eu sinto como se estivesse assistindo a alguém bêbedo no karaokê! :)~ Isso pode ser tão engraçado quanto esquisito ao mesmo tempo. Engraçado porque elas esquecem de si mesmas e de que estão num palco. Esquisito porque elas desnudam completamente as suas almas para o público. E, acredite em mim, você não quer estar em nenhum desses papéis. :) Como público, você não quer ser sujeitado a isso. Como bailarina, você não quer estar na posição onde toda a sua disposição psicológica está às vistas do público. É informação demais, e uma invasão ao direito de privacidade do público. E eu não quero dizer à privacidade deles, quero dizer a nossa. Sim, o público tem o direito à privacidade do artista.

Pense sobre o assunto. Não queremos assustar alguém da platéia, ou mostrar a eles nossas partes íntimas – mais por consideração a eles do que por nós mesmas. Então porque iríamos mostrar a eles a parte mais íntima, mais privada, da nossa alma? Isso se chama nudez psicológica, e é provável que o seu público não queira ver isso.

Pessoalmente, quando me confronto com essa situação, eu me pego psicanalisando a bailarina. Eu começo a tentar entendê-la, e a imaginar todo o tipo de coisa sobre a sua personalidade, os seus vícios, sua vida, e diversas outras coisas que não são da minha conta. E é por isso que nós, como artistas, não deveríamos colocar nosso público nessa posição. Nós estamos lá para deleitar o nosso público com uma boa dança, não para começar uma sessão pessoal de meditação/busca da alma com nós mesmas. O palco é sobre eles, não nós. Não só esses sentimentos pessoais podem fazer o seu público ficar desconfortável, como tiram de nós todo o mistério. E eu não quero dizer apenas o mistério físico, tampouco, apesar dele também ser importante. Eu quero dizer o mistério emocional, psicológico. Assim que perdemos o nosso mistério, não há mais razão para o público voltar e nos assistir novamente. Eles já viram tudo. Não há mais nada para eles descobrirem.

Eu acho que o objetivo desse post era dizer que quando estamos no palco, nós estamos atrás do volante. Nós podemos e devemos controlar o quanto de nós mesmas nós mostramos para o público. Lembre-se, como em tudo, muito de qualquer coisa nunca pode ser bom. Isso também se aplica ao sentimento e à atuação. O truque para dançar com sentimento é atingir um equilíbrio. Nós devemos ser capazes de expressar tanto a música quanto a letra de uma forma que seja verdadeira para nós mesmas, mas sem exagerar. Isso não só vai tornar a nossa dança mais genuína, mas também mais convincente.

Como sempre, comentários, questionamentos ou reclamações são bem-vindos. :)


3 comentários:

  1. Profundo, comovente e reflexivo. Muito obrigada por postar.
    Conheci seu blog através do Sala de Dança e estou amando!!!
    Sucesso!!!
    Rebeca

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  2. Oi, Laura

    Eu, felizmente, por pouco tempo me preocupei em dançar como as egípcias para me preocupar tanto com essa questão do sentimento, essência e expressão genuínos.

    Dentro do mercado que, NÓS trabalhamos, esse tipo de expressão soa esquisito. A não se, é claro, que você queira ser reconhecida como uma "brasileira de alma egípcia" e trabalhar fora do país.

    Como não é o meu caso, gasto energia pensando em construir minha personagem baseado no que é mais confortável para o público que ma assiste e comigo mesma.

    Beijos

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  3. Oi, Laura

    Felizmente, me preocupei por pouco tempo sobre essa questão de ter "sentimento, essência e expressão egípcias". Acho que essa ideia é para aquela bailarina que quer receber o rótulo de "brasileira de alma egípcia" e que quer trabalhar fora.

    Hoje, eu me preocupo em trabalhar na construção da personagem que fica mais confortável comigo mesma e com o público que me assiste.

    Beijos

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