Domingo, 2 de outubro
de 2011
Eu sou uma feminista frustrada. Eu sempre fui feminista, de um
jeito ou de outro, mas a parte “frustrada” é bem recente. Isso tem muito a ver
com o lugar onde vivo e com o que eu faço. Por sorte ainda não atingi o ponto
de não voltar mais atrás. Eu ainda depilo minhas pernas e axilas e uso
maquiagem :-) E eu ainda sou hétero (seja lá o que isso realmente significa).
Mesmo assim odeio os homens. Bom, a maior parte deles. Não é que eu odeie os
indivíduos que por acaso são homens. Eu só odeio a “macheza” deles – o seu
“machismo” – ou o que quer que faça com que eles subjuguem as mulheres.
Correndo o risco de dizer o óbvio, eu vivo numa sociedade
ultra-patriarcal. Isso significa que os homens têm a última palavra em quase
todos os aspectos da vida aqui. Eles são os líderes, os que fazem as leis, os
que as mantêm e os que as quebram. Na verdade, é assim na maior parte do mundo,
mas é um pouco mais exagerado em lugares como o Egito do que nos EUA ou na
Europa Ocidental. Isso não quer dizer que o Egito está no mesmo nível que a
Arábia Saudita, Irã ou Afeganistão. Mesmo assim a misoginia tem o seu lugar
cativo aqui. E ela toma diversas formas: mutilação genital feminina
(extremamente comum); violência doméstica (muito comum); assédio sexual (sem
comentários); crimes de honra (bem mais raros, mas acontecem de vez em quando);
leis que regem o divórcio, adultério e outros status sociais (que evidentemente
favorecem os homens); e a sempre presente escola de pensamento do “lugar da
mulher é em casa” que tanto os homens E as mulheres seguem. Novamente, todas
essas coisas existem em outros países, mesmo no Ocidente – é só que elas
acontecem muito mais frequentemente e com muito menos estigma nesse pedacinho
do mundo.
(Muitos justificam esse fenômeno dizendo que isso é feito
para “proteger” e “dar poder” às mulheres. As pessoas que usam esses argumentos
são chamadas de apologistas. Eles são mestres em fazer o pior dos males parecer
benigno.)
A misoginia também aparece nas duas categorias nas quais a
misoginia mais comum divide as mulheres. Elas são “santas” ou “putas”. Funciona
assim. Usa o véu. Santa. Não usa véu. Puta. Só tem amigos do mesmo sexo. Santa.
Tem amigos de diversos gêneros. Puta. É uma mãe que só fica em casa. Santa. É
bailarina. Puta. Não fez sexo antes do casamento. Santa. Fez sexo antes,
durante e depois do casamento. Puta. Não se casou antes dos 30. Senhora velha
com problemas sérios. Entendeu? Bom. :-) Então. Em qual categoria eu me
encaixo? Vou te dar uma dica. Não é “santa”. :)
Você provavelmente deve estar pensando no que isso tem a ver
com dança do ventre. A resposta é tudo. A dança do ventre supostamente é para
ser uma dança de mulheres. Feita por mulheres para mulheres. Essa foi uma das
coisas que mais me atraíram nessa dança. Mas aqui no Egito, são os homens que
controlam e ganham dinheiro com a dança. Eles são os agentes, e os gerentes de
hotéis e de talentos. Eles são os músicos e a maior parte dos consumidores.
A parte econômica da dança do ventre parece ser um pouco
diferente no resto do mundo. Nos EUA, Europa, Rússia e Ásia, são as próprias
bailarinas que estão no comando de todos os aspectos da dança. Elas não fazem
apenas as performances. Elas organizam
os eventos, são agentes, e em muitos casos, são a maioria dos consumidores. São
mulheres ajudando outras mulheres, e elas lucram com a sua dedicação a essa
arte.
Por favor, não me entendam mal. Eu não tenho nada contra os
homens cooperarem com as mulheres
para ajudá-las a serem bem sucedidas. Entretanto, a palavra-chave aqui é “cooperar”. Infelizmente, a cooperação às
vezes dá lugar à exploração – tanto financeira quanto de outras formas. Para
nós, bailarinas que insistimos em trabalhar aqui, esse problema vem com o
lugar. Não acontece sempre, e existem
vários homens de respeito no ramo, mas estamos fadadas a encontrar esse
problema em algum ponto ou outro das nossas carreiras. Nesse ponto, é uma
questão de qual tipo de exploração
nós decidimos tolerar. E isso é uma coisa individual. Pessoalmente, eu prefiro
ser roubada a ser passada a mão, seduzida a ir para a cama com alguém, ou mesmo
ficar ouvindo algum pervertido falar sobre assuntos inapropriados. Então eu
escolho as pessoas com quem eu lido de acordo com isso.
Mesmo assim, eu frequentemente me pego desejando que mais
mulheres pegassem as rédeas do lado comercial da dança do ventre. Algo me diz
que se elas fizessem isso, as coisas seriam melhores. Só outra mulher pode
entender realmente o valor dos nossos shimmies. Só outra mulher pode apreciar
de verdade a coragem que é necessária para subir no palco “seminua” e se
balançar, especialmente numa sociedade que faz cara feia para isso. Só outra
mulher pode apreciar de verdade todo o dinheiro, tempo e energia que consumimos
para aprender e se apresentar nessa dança.
Para aqueles sociólogos que sugeririam que não existe algo
como uma “arte feminina” porque não existe gênero, eu sugeriria que eles
olhassem os fatos. Está muito bem estabelecido que os movimentos da dança do
ventre são derivados dos movimentos naturais que as MULHERES fazem quando as
MULHERES estão GRÁVIDAS. As ondulações abdominais, os shimmies, os shimmies de
abdômen, os impulsos pélvicos etc. E da última vez que chequei homens não ficam
grávidos. Alguém gostaria de provar que estou errada? ;-)
Outra evidência de que essa é uma dança de mulheres é que
não há papel específico para o homem na dança do ventre. Diferentemente do
balé, da salsa, e das milhares de danças folclóricas que existem ao redor do
mundo, não existem “movimentos masculinos” na dança do ventre. Então, quando
homens fazem dança do ventre, eles incorporam uma persona feminina. Eles se transformam em mulheres (nem que seja
pela duração do show). E não há necessariamente nada de errado nisso. Só estou
dizendo.
E o mais interessante é que um relativamente famoso
professor de dança do ventre egípcio uma vez me disse que não há como um homem
realmente dançar dança do ventre. Segundo ele, um homem pode apenas “imitar” a
dança porque ele não tem um útero, que é a fonte de inspiração artística da
mulher. (Eu pessoalmente “vejo” a dança na minha cabeça quando escuto a música,
não sinto no meu útero, mas isso é só eu :D). O que quer que você pense sobre a
relação entre inspiração artística e o útero, eu acho que o que ele queria
dizer é que a dança do ventre é essencialmente
feminina. Só as mulheres podem entendê-la direito, porque isso requer aquela
essência feminina que os homens não têm (a maioria deles pelo menos). Se é ou
não o útero a fonte dessa essência aí é outra discussão.
Dadas todas as evidências de que a dança do ventre é uma
dança de mulheres, me parece muito esquisito que sejam os homens a controlar
todos os seus aspectos. Mas esse é um mundo de homens no final das contas, e
quase tudo é controlado por eles (até mesmo a esmagadora maioria dos
ginecologistas egípcios são homens!).
Um dos resultados dessa indústria da dança do ventre ser
controlada por homens é que as mulheres acabam por brigar entre si (e não estou
falando daquelas briguinhas que acontecem na nossa comunidade de dança do
ventre dos EUA). Estou falando de uma chamar a polícia para denunciar a outra,
de destruir e roubar as roupas da outra, de espalhar boatos para destruir a
carreira da outra, e fazer coisas (e “pegar” pessoas :O ) que elas não deveriam
fazer para evitar que outra bailarina “roube” o seu trabalho.
Por mais feminista que eu seja, é difícil não ser arrastada
por essa onda de ódio feminino em algum momento. Eu percebi isso quando outro
dia me peguei me referindo a outra bailarina como uma “sharmoota”. Isso significa “prostituta” em árabe egípcio. Eu me
horrorizei quando ouvi essa palavra saindo tão facilmente da minha boca. Não
porque ela não seja de fato uma
prostituta, mas porque a palavra é tão carregada de culpa. Ainda mais em árabe
do que em inglês (N.T.: ou português). E no fundo, essa sharmoota pode não merecer a condenação que a palavra implica. Ela,
assim como milhares de outras mulheres, é analfabeta e destituída de talento.
Portanto ela não tem outro meio de sobreviver que não seja usando do seu corpo
das mais variadas formas. Isso faz dela uma vítima e uma sobrevivente, não uma sharmoota.
Amei o post! realmente, nós mulheres às vezes demoramos pra nos tocar que a famosa competição feminina tem muito do machismo arraigado da sociedade em que vivemos. É pior no mundo oriental? certamente!
ResponderExcluirMas também ocorre por aqui.
Fiquei bem surpresa com esse post, pois é um fio de esperança, aqui temos a sensação de que mulheres que vivem em sociedades ultra patriarcais como vc vive, acabam totalmente embotadas do machismo em que estão imersas, sem vontades ou esperanças, e vc apesar das difilculdades que passa, não se parece nada com esse estereótipo que eu tenho em minha imaginação.
ResponderExcluirGostaria de ve-la dançar pois acho maravilhosa essa arte que vc pratica, gostaria tambem que vc nunca desistisse do feminismo, vc melhor do que muitas de nós aqui no ocidente sabe o quanto ele é necessário, te desejo muita força para que o machismo nunca consiga destruir sua essencia.