imagem da graphic novel "Habibi" de Craig Thompson |
Segunda-feira, 11 de
junho de 2012
Por Luna do Cairo
Estava escrito assim nas manchetes dessa semana: “Mulheres egípcias são assediadas sexualmente em manifestação contra assédios”. Bom, isso não é irônico?
Na sexta, algumas centenas de mulheres organizaram um
protesto contra assédios para denunciar o assédio sexual que é onipresente no
Egito. Homens que as apoiavam fizeram um círculo protetor ao redor delas,
apenas para serem subjugados por uma multidão de homens jovens e violentos que
assediaram sexualmente algumas das mulheres participantes.
E isso, senhoras e senhores, é o que acontece quando as
mulheres resolvem se defender no Egito.
Espera, talvez nós não devamos ser tão rápidos em condená-los. Vamos
ver pelo lado positivo. Algumas mulheres e
alguns homens estão começando a reconhecer que o assédio sexual é um GRANDE
problema e estão se dispondo a fazer alguma coisa a respeito. É triste que
tenha demorado muitos casos de estupros coletivos durante a revolução para que
acordassem, mas pelo menos eles acordaram. Antes tarde do que nunca. :/
Mas vamos encarar o problema. O ódio às mulheres está
profundamente enraizado na sociedade egípcia. Assim como em diversos lugares,
mas especialmente no mundo árabe. E a terrível combinação de extremismo
religioso, cultura e testosterona é a culpada.
Antes que me acusem de propagar estereótipos negativos, por
favor notem que eu já antecipei tal acusação, e sendo bem sincera, não dou a
mínima. Eu tenho uma formação superior numa universidade de elite e tenho total
noção de que o que estou dizendo não é politicamente correto nem sensível às
diferenças culturais. Isso porque estou mais interessada em dizer a verdade do
que em ser “sensível” com relação a pessoas que são insensíveis às mulheres. Isso,
além do fato de que eu vivo aqui, o que me dá o direito de dizer as coisas como elas
são. Eu não poderia dizer essas coisas quando estava em Harvard a mais 8 mil
quilômetros de distância. Eu não tinha experiência “in loco” para corroborar
minhas afirmações. Mais importante, a máfia dos culturalmente sensíveis teria
me enforcado pela minha completa ausência de jogo de cintura.
Por alguma razão, nós ocidentais “liberalizados” ficamos
extremamente desconfortáveis quando alguém sugere que a misoginia é um dos
principais pilares da cultura do Oriente Médio. Mas isso não significa que isso
não seja verdade. De que outra forma você explicaria o que aconteceu na última
sexta? De que outra forma você explicaria todos os casos de estupro coletivo
que acontecem toda vez que se faz um grande protesto na Praça Tahrir? A que
podemos atribuir a alta taxa de violência doméstica? De circuncisão feminina? E
dos assassinatos por honra que acontecem de tempos em tempos?
Vou te dizer como o egípcio médio explica os acontecimentos
dessa última sexta-feira. De acordo com eles, alguns remanescentes do regime
Mubarak pagaram “criminosos” para estuprar as mulheres numa tentativa de
manchar a imagem da revolução. Não só nessa sexta, mas em todas as sextas em
que isso aconteceu. Beleza. Vamos supor apenas para argumentar que essa teoria
é verdadeira. Ainda assim não é desculpa. Esses supostos “criminosos” não são
estrangeiros. Eles são egípcios como quaisquer outros. E não me importa o
quanto eles precisam de dinheiro. Existem milhares de pobres que não fariam
esse tipo de coisa mesmo que se oferecesse o mundo a eles. Além disso, quem
quer que seja capaz de cometer tais atrocidades por dinheiro é bem capaz de
cometê-las sem ser por dinheiro. O problema não é a pobreza. É a misoginia.
A outra explicação mais popular para o que aconteceu é a
falta de segurança no Egito. Oi? Desde quando falta de segurança virou desculpa
para assediar mulheres? Seres humanos decentes não precisam de uma força
policial no cangote para não estuprar mulheres.
Tudo isso estranhamente me lembra do que aconteceu após o
furacão Katrina e do tsunami que atingiu o Japão alguns anos atrás. Como o
furacão Katrina mostrou, desastres naturais criam por um tempo um ambiente com
condições perfeitas para a ilegalidade. E como o tsunami japonês demonstrou, a
ilegalidade não precisa acontecer.
Realmente o mundo caiu em louvores aos japoneses por manterem o mais alto nível
moral durante um período em que eles tinham todas as desculpas para não
fazê-lo. Isso prova que a ilegalidade não é um resultado inevitável de um
policiamento reduzido, mas uma escolha
que as pessoas fazem.
Similarmente, os violentos crimes misóginos que as mulheres
têm sofrido após a revolução não são um resultado inevitável das forças de
segurança do regime terem sido reduzidas. Eles são resultado de más escolhas
que indivíduos masculinos fazem. E de tal forma, eles deveriam ser processados
dentro da lei.
Exceto que não existe uma lei criminalizando o assédio
sexual no Egito. Liberais tem tentado criar uma já faz algum tempo, mas sem
sucesso. Eles são minoria perto daqueles que acreditam que uma mulher recebe o
que ela merece. Se ela é assediada é porque ela se veste e/ou se comporta de
forma inapropriada. Se ela é estuprada, ela deveria ter feito algo para evitar
isso também. O assédio é considerado algo que é culpa da mulher. Os homens
estão completamente isentos de culpa.
As únicas leis considerando as mulheres sendo discutidas no
momento são as que vão diminuir a idade mínima para mulheres casarem, de 18
para 14 anos, e as que darão direito aos maridos de fazerem sexo com os
cadáveres das suas esposas, até 6 horas após a morte delas. Seguindo esse
caminho, eu não acho que o Egito vá criar nenhuma lei contra assédios tão cedo.
Pensando sobre a situação das mulheres egípcias, me peguei
pensando sobre as mulheres no meu país. Como elas chegaram onde estão hoje?
Como foi o seu movimento pelos direitos das mulheres? Que tipos de direitos
elas lutaram para ter? Elas enfrentaram o mesmo tipo de respostas violentas que
as atuais egípcias?
Eu não sou especialista em direitos femininos de nenhuma
parte do mundo, mas a impressão que tive das minhas aulas de história na escola
foi que as americanas lutaram pelo direito de votar, de trabalhar fora de casa,
e (ainda) pelo direito ao aborto. Basicamente as mulheres queriam o direito de
existir intelectualmente tais como seus colegas do sexo masculino. Compare com
as questões atuais das mulheres do Oriente Médio. Claro, as mulheres do Oriente
Médio podem votar, e algumas trabalham fora de casa. Diabos, elas tinham até
mesmo o direito de se divorciar (em circunstâncias limitadas) e à herança antes
mesmo das mulheres ocidentais poderem. Mas para que serve tudo isso se elas não
têm o direito básico à segurança em suas próprias ruas e suas próprias casas?
De que serve tudo isso se os homens podem abusar delas verbalmente,
emocionalmente, fisicamente e sexualmente sem o menor medo de serem condenados,
muito menos de serem presos?
Por favor não me entendam mal. Não estou condenando toda uma
cultura ou região. Eu sei que existem homens muito esclarecidos no Oriente
Médio que estão trabalhando junto com as mulheres para criar um futuro melhor.
E que existem mulheres liberalizadas no Egito. Mas eles ainda são uma pequena
minoria. Eu também sei que crimes contra a mulher acontecem no mundo inteiro,
inclusive no Ocidente.
... Ainda assim parece ser um verdadeiro problema no mundo
árabe. Talvez porque ainda não tenha nenhum estigma associado a isso. Nos EUA,
por exemplo, se um homem assedia uma mulher existe uma grande chance de ele ser
preso. Mais importante, ele será desprezado por quase todos que o conhecem,
incluindo, possivelmente, os seus pais e filhos do sexo masculino. O fato de
que homens que assediam mulheres sofrerem consequências legais e sociais
severas no ocidente resultou na redução da violência contra a mulher ao longo
dos anos – violência doméstica, pelo menos.
Por outro lado, homens no Oriente Médio não sofrem as mesmas
consequências por seus crimes misóginos. Eles não ficam mal vistos pela
sociedade, e eles certamente não vão para a cadeia. E quanto às vítimas
mulheres, não existem serviços de apoio disponíveis. Não existem abrigos para
mulheres espancadas. Não existe ninguém oferecendo a elas ajuda psicológica. Na
melhor das ocasiões, elas são tratadas como se nada tivesse acontecido. Na
pior, elas são culpadas por provocar o ódio ou o desejo sexual nos homens,
dependendo do tipo de ataque que elas sofreram.
O que me leva ao meu próximo tópico. O maior problema não é
necessariamente os homens que se envolvem em violência contra a mulher. São os
homens que ficam em volta, que arrumam desculpas ou deixam de condenar o
comportamento dos outros é que são o real problema. Precisa haver homens o suficiente, não apenas
mulheres, dispostos a adotar uma postura contra a violência misógina...
dispostos a ensinar aos seus filhos a não se envolverem nisso, e às suas filhas
a não tolerar isso. Não haverá progresso até isso acontecer.
Entretanto, mais homens não serão esclarecidos até mais
mulheres fazerem um esforço coletivo em denunciar publicamente a misoginia. Por
mais triste que eu esteja por todas as mulheres vítimas das sextas na Tahrir,
temo que seja necessário suportar muito mais para que elas comecem a ter algum
impacto na consciência masculina. Não vai ser fácil, e provavelmente teremos
ainda mais violência. Mas esse é o preço do progresso.
Esse progresso, entretanto, vai demandar maior participação
e freqüência. Para que esses protestos tenham algum impacto, eles precisam
incluir uma parcela maior da população feminina. Algumas centenas de mulheres
das classes de elite fazendo uma demonstração de vez em quando não terá o
efeito desejado. Os egípcios não levam à sério minorias, especialmente se é
considerada “radical”. Mas se as mulheres de todas as classes começassem a
demandar por segurança nas ruas e nas suas casas, o Egito seria forçado a
ouvi-las.
Eu não sou de forma nenhuma otimista demais. Sei que existem
muitos obstáculos para a mobilização das mulheres. O primeiro e maior deles é a
violência. Uma mulher que sai da cozinha para protestar pelos seus direitos
provavelmente sofrerá de alguma violência quando voltar para a cozinha. Existe uma
boa probabilidade de que os seus “homens”, sejam o marido, pai, ou irmãos, irão
puni-la pelo seu “comportamento impróprio”.
O segundo obstáculo para a mobilização feminina é a
conscientização. Eu posso estar errada, mas eu tenho a forte suspeita de
que a maioria das mulheres não têm noção de que as coisas poderiam ser
melhores. Eu nem tenho certeza de que elas reconhecem os abusos como sendo
abusos. Os abusos são tão rotineiros na vida de tantas mulheres que elas não
necessariamente os vêem como algo errado. O que torna as coisas ainda piores é
que para muitas mulheres não existe nenhuma base de comparação. A maioria das
suas vizinhas e parentas leva uma vida similar. Elas não têm acesso ao estilo
de vida das classes mais altas, a não ser que elas trabalhem como faxineiras
para os egípcios ricos e liberalizados.
O que nos leva à questão... Podem as mulheres serem
reprimidas se elas não percebem?
Se uma árvore cai numa floresta e não tem ninguém em volta,
ela ainda faz algum som?
O terceiro obstáculo, a maioria das mulheres não possui
educação suficiente para que possa pedir por algo melhor. De acordo com o
Conselho a Favor da Mulher no Egito, 50% das mulheres egípcias são analfabetas.
Eu não preciso explicar que isso é um empecilho para a mobilização das
mulheres.
Essas são as razões pelas quais as mulheres não têm sido
suficientemente ativas na criminalização das diversas manifestações da
misoginia, e porque a sociedade ainda acha que isso é normal...
... o que é mesmo. Eu não sei quais são as razões biológicas
ou psicológicas para isso, mas estou definitivamente convencida de que a
misoginia é natural para os homens. Assim como o preconceito, ganância, ambição,
e pênis não circuncidados (:D). Mas isso não significa que essas coisas são boas. “Natural” e “bom” não são a necessariamente
a mesma coisa. Nós herdamos esse mundo do seu criador em seu estado bruto, mas
o criador também nos deu um cérebro para torná-lo melhor. Nós fazemos melhorias
físicas, com coisas como a tecnologia... e cesáreas. Nós podemos fazer isso
mentalmente pelo condicionamento social.
Os homens precisam ser condicionados a abandonar o seu
estado natural de misoginia. E as mulheres é que devem fazer isso. Claro que
elas vão precisar do apoio dos homens nesse caminho, mas o maior impulso
precisa vir das mulheres. O objetivo é que as mulheres cheguem num ponto em que
elas percebam que elas têm escolha. Porque são escolhas que fazem das pessoas seres humanos. Elas nos forçam a nos
utilizar da razão, que é o que nos diferencia dos animais.
Até isso acontecer, não podemos utilizar honestamente a
palavra “revolução” para descrever o que aconteceu no Egito. Não houve revolução.
Revolução significa mudança, mas tudo continua exatamente igual ao que era
antes da queda de Mubarak. As pessoas ainda tem a cabeça muito limitada. As mulheres
ainda são oprimidas. Os pobres continuam pobres e os ricos continuam ricos. E nada
disso vai mudar até que o Egito reconheça a dignidade de suas mulheres. Legalmente,
socialmente e politicamente.
Você pode dar uma olhada no último post da Luna sobre esse
assunto aqui: A Feminista Frustrada.
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Esse texto é de autoria exclusiva da Luna do Cairo e o Ventre da Dança não concorda com todas as colocações aqui expostas, especialmente no que tange que a misoginia é "natural" do homem. Acreditamos que a misoginia é uma construção social, e que, portanto, os homens são ensinados que é assim que as coisas são, e eles agem de acordo com esse aprendizado.
Para mais matérias sobre o assunto você pode ver aqui:
A Violência Sexual contra as mulheres no Egito (Blogueiras Feministas)
Jesus toma de conta! Eu acompanho os textos da Luna, e este foi o mais impactante.
ResponderExcluirA situação lá é muito pior do que imaginamos...
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