Esse é um livro que deveria ser editado em todos os países onde se
estuda dança do ventre, e que talvez eu devesse ter lido há muitos anos
atrás, mas sabe como é a vida... nunca dá tempo de ler tudo que a gente
gostaria e/ou deveria.
É uma coletânea de ensaios de diversos autores, começando pelo estudioso
Christian Poché, francês, óbvio, que tem diversas obras muitíssimo
interessantes sobre musicalidade, em especial a música árabe. Não
consigo entender porque ele nunca foi traduzido para o inglês, é
simplesmente uma perda para todos aqueles que não falam francês.
No ensaio de Christian (olha a intimidade), chamado "La danse arabe:
quelques repères" (A dança árabe: algumas referências), ele trata da
utilização de diversos termos pelos árabes para denotar ou não a dança
ao longo da história. Porque, quem estuda dança do ventre deve ter
percebido, existe uma total inexistência de estudos realizados por
árabes acerca da dança árabe. Só se começa a ter algum tipo de registro
de origem árabe, de estudos ou de forma puramente jornalística, a partir
do século XX. E quando eu digo registro, não é alto do tipo, "na região
Blá existe a dança Blé que se faz assim e assado", não, é algo ainda
mais complicado, é a ausência da palavra em árabe que denomina o ato de
dançar. De todos os textos do livro, esse é o mais pesado e complicado,
mas é realmente essencial para se entender algumas dificuldades
acadêmicas e também o posicionamento de diversos árabes com relação à
dança.
No ensaio seguinte, da organizadora do livro, Djamila Henni-Chebra, cujo
título é "Égypte: profession danseuse" (Egito: profissão bailarina),
está o melhor texto do livro. No trabalho de Djamila está traçada toda a
história documentada da dança do ventre, num trabalho primoroso de
pesquisa em jornais e revistas egípcios. Pessoalmente, a melhor parte de
ter lido esse texto é ter tido uma confirmação acadêmica e organizada
de tudo o que eu já havia lido em pedaços por aí e que fui juntando na
minha cabeça, Djamila simplesmente traduziu boa parte do que consegui
apreender em 15 anos de dança e estudo num texto preciso e gostoso de
ler. Pensando bem, acho que eu deveria me sentir mal.
O livro segue com 3 ensaios de danças folclóricas, o primeiro do Egito,
compreendendo em trechos traduzidos da tese de mestrado escrita nos anos
70 por Magda Saleh, prima ballerina do Egito, que hoje vive nos EUA.
Fiquei tão encucada com os trechos desse livro, que são tão ricos e bem
escritos, que agora estou enlouquecida atrás do texto completo de Magda,
e ainda não consegui. Uma tristeza, porque tenho a sensação que a tese de Magda é mais interessante do que a de Farida Fahmi.
O segundo ensaio de danças folclóricas é de Sellami Hosni, sobre a
Tunísia, que achei interessante, mas eu não me interesso particularmente
pelas danças tunisianas, então não li com tanta atenção.
E, por fim, um ensaio sobre danças da Algéria, de Brahim Bahloul.
Olha, é uma leitura obrigatória para quem estuda dança oriental.
P.S.:Sei que irão perguntar, então, pesquisei antecipadamente, e não encontrei nenhuma tradução desse livro para nenhum outro idioma, portanto, acredito que só tenha em francês.
Esse ano resolvi fazer um post diferente para comemorar o dia da mulher! Em vez de falar de dança, vou falar sobre literatura feita por mulheres no mundo árabe! Infelizmente nem tudo que mencionarei está disponível em português, porque a literatura árabe por aqui ainda não é tão procurada nem tão conhecida. Mas um dia a gente chega lá! Essa também não é uma lista muito extensa, pois vou me restringir apenas ao que já li.
Vamos começar com o Egito!
Entre as escritoras árabes que tratam do especificamente do universo feminino e da condição da mulher no mundo árabe existe dois lugares de honra reservados para duas mulheres egípcias incríveis!
Nawal El Saadawi
Essa escritora maravilhosa também é médica, e suas obras são muito influenciadas pelas vivências que ela teve ao visitar o interior do Egito e conhecer de perto a real situação das mulheres fora da capital do país. O que não torna o Cairo isento de ocorrer situações tão assustadoras quanto aquelas descritas nos seus livros. Suas obras ainda podem ser encontradas em sebos em português e existem traduções de Portugal. Aqui os livros que eu já tive a oportunidade de ler dessa grande feminista: God dies by the Nile e uma das obras mais icônicas Woman at point zero.
Huda Shaarawi
Essa é uma figura importantíssima na história do feminismo árabe, pois foi a primeira mulher a retirar o véu em público como um ato político! Influenciada pelo feminismo das sufragistas europeias, com quem tinha muito contato, Huda escreveu uma auto bibliografia/livro de memórias que é simplesmente DIVINO, chamado Harem Years, que infelizmente ainda não foi traduzido para o português. Mas, vale demais a leitura, e você pode ver a minha resenha sobre o mesmo aqui.
Ela é uma das inspirações para esse vídeo maravilhoso sobre a história do visual feminino no Egito de 1910 a 2010. Ela é a inspiração visual para 1920 :-D
Mais informações sobre cada visual desse vídeo estão aqui.
Dina
Ok, Dina é bailarina, e das mais controversas da atualidade, mas ela escreveu uma autobiografia extremamente interessante, e que já foi tema aqui no blog, sendo objeto de um mar de posts! Não está num lugar de honra, mas precisa ser mencionada e você encontra os antigos posts sobre sua autobiografia aqui.
Saindo do Egito e indo para o Líbano temos:
Joumana Haddad
Essa escritora nascida em Beirute também é jornalista, poetiza e ativista feminista! E se não bastasse tem pelo menos uma obra traduzida para o português! UHUUU! O interessante sobre sua obra é que a mesma transcende o mundo árabe, o que torna a leitura muito boa para nós pensarmos também sobre a nossa condição de mulher ocidental. Por enquanto só li um livro dela, mas tenho outros na lista, e você pode ver a minha resenha sobre "Eu matei Sherazade" aqui.
Hanan Al-Shaykh
Outra libanesa maravilhosa! Sua obra mais conhecida é "The story of Zahra", e ela segue a linha de denúncia da Nawal, o que torna a sua leitura bem pesada, mas simplesmente necessária. Você pode ler a minha resenha sobre esse livro aqui.
BÔNUS
Agora como bônus, vou sair um pouquinho do mundo estritamente árabe para mencionar uma autora iraniana, mas cuja obra é tão linda que precisa ser colocada aqui: Marjane Satrapi. Essa cartunista de origem persa escreveu graphic novels absolutamente imperdíveis! Entre elas a premiada "Persépolis" (que também virou um filme animado que chegou a disputar o Oscar!), "Frango com Ameixas" e "Bordados". Hoje Marjane vive na França e suas obras são majoritariamente para crianças, mas a maioria só tem em francês.
Outro bônus: foi lançado há pouco tempo em português uma tradução da autora turca Gül Irepoglu, algo que é para se comemorar, comentar e indicar o livro "A Concubina"!
Que este dia das mulheres amplie nossos horizontes!
Tahia Carioca foi um dos grandes ícones da Era de Ouro da Dança do Ventre, que podemos dizer que aconteceu entre 1930 e 1959, aproximadamente. Você pode encontrar vídeos dessa bailarina espetacular em praticamente qualquer coletânea de vídeos dessa época, e todos eles valem a pena ser estudados, pois Tahia foi uma das bailarinas que ficaram conhecidas por elevar o nível técnico da dança oriental no Egito. Tanto que foi chamada pela revista New York Times como uma pioneira da dança oriental moderna, isto é, como ela é dançada hoje.
Tahia nasceu em Ismalia, no Egito, em 1919 como Badaweya Mohamed Kareem Al Nirani.
Por conta de problemas de convivência com sua família, ela fugiu para o Cairo,
onde foi morar com uma antiga vizinha, Souad Mahasen, que era dona de
uma casa noturna.
Quando chegou ao Cairo, Tahia começou a estudar dança na Escola de Dança Ivanova, e apesar
de pedir uma oportunidade para trabalhar na casa noturna de Souad, a sua
vizinha queria impedir que a menina recém chegada de sua cidade natal, e por quem ela tinha muito carinho, entrasse
nesse estilo de vida, que desde sempre foi considerado de baixíssima reputação. Alguns relatos indicam que Souad acabou cedendo aos pedidos de Tahia, enquanto
outros indicam que apesar de suas reticências, o rumor da beleza de menina
chegou aos ouvidos de Badia Al Masabni, que ofereceu um lugar para ela dançar na sua famosa
Sala.
Independentemente de como ela chegou à Sala de Badia, quando Tahia começou a
trabalhar lá em 1933 o seu nome artístico ainda era Tahia Mohamed, porém, foi justamente nessa época que uma
dança se tornou famosa por conta de um filme do Fred Astaire e Ginger Rogers. Essa dança tinha
como nome Carioca, pois era baseada no trabalho da luso-brasileira Carmen Miranda, e,claro, que Tahia começou a dança-la, obtendo um grande sucesso, e foi assim ela ganhou um novo nome artístico: Tahia
Carioca. Mais tarde ela incorporaria passos de danças latinas em suas performances.
Tahia Carioca versão Carmen Miranda!
A partir daí o seu sucesso foi galopante. Tahia começou a trabalhar na indústria do cinema
em 1935, e participou de mais de 120 filmes, sem contar peças de teatro e
programas de televisão, incluindo diversas novelas. Ela era tão famosa que muitas vezes
era chamada de a Marilyn Monroe do Egito (título esse que também era atribuído a sua contemporânea Samia Gamal). É importante lembrar que Tahia não só dançava brilhantemente, mas também cantava e atuava.
O primeiro filme em que ela aparece como atriz é de 1946 e se chama"Laabet el sitt"("O Fantoche da Dama") e um dos pontos altos de sua carreira foi o filme "ShababImra" ("A Juventude de uma mulher"), que foi exibido em Cannes em 1956. Ela chegou a ser chamada para participar de filmes em Hollywood, mas havia a exigência que ela fizesse aulas de ballet, pois seus braços foram considerados pouco elaborados, o que ela teria se recusado a fazer pois ela era uma bailarina profissional e não precisava de ajuda para dançar. Sendo rejeitados por Tahia, os produtores de Hollywood fizeram contato com a sua então rival, Samia Gamal, que aceitou a fez história.
Existem algumas lendas em torno de Tahia Carioca. Por exemplo, dizem que em 1936 ela dançou no casamento do Rei Farouk, do Egito (que na época era uma monarquia), onde dividiu o
palco nada menos do que Um Kulthum, que era uma das suas fãs. Tanto que dizem
que Um Kulthum afirmou que Tahia cantava com o seu corpo (olha aí a leitura musical!). Também existem relatos de
que nesse mesmo evento ela teria dado um tapa no Rei, por ele ter colocado uma pedra
de gelo dentro da sua roupa enquanto ela dançava. De uma forma geral, a relação de Tahia com o Rei Farouk era complicada, encontram-se relatos de que ela adorava a Rainha Farida, esposa de Farouk, e só aturava o Rei por
conta dela, e que depois que os dois se divorciaram ela nunca mais teria aceitado nenhum
convite dele para dançar, incluindo um convite para dançar na sua segunda festa
de casamento. Quando o rei faleceu, sua segunda esposa disse a Tahia que ela
sabia o quanto ela não gostava dela, ao qual Tahia teria respondido que sim,
não gostava, porque ela havia trazido má sorte ao Egito ao se casar com o Rei.
Na esfera pessoal, Tahia acabou por seguir os passos do seu pai, que se casou nada menos do que 7 vezes, casando-se ela
mesma 14 vezes (!!!!!) com diversos atores e homens de negócios, incluindo um
americano que mais tarde também foi casado com Samia Gamal. Apesar de tantos
casamentos, Tahia nunca conseguiu engravidar, o que era algo que a entristecia,
mas em compensação ela dava atenção especial aos seus sobrinhos, além de ter
uma filha adotiva, Atiyat Allah.
Fora das telas e do palco, Tahia também mantinha uma vida política ativa. Até a
revolução de 52, ela era leal ao Rei Farouk e à Monarquia, tanto que em 1953 chegou a ser presa pelo
Nasser (que viria a ser o segundo presidente do Egito em 1956 e que foi um dos líderes da revolução de 52), que a manteve na prisão por 110 dias, isso por ela ter expressado em público o
seu desejo de ver a volta do regime anterior.
A partir de então, Tahia se manteve politicamente ativa na luta pelos direitos
dos egípcios, chegando até mesmo a entrar em greve em 1987, por conta de uma
nova legislação que diminuía os direitos trabalhistas, inclusive dos atores.
Tahia era famosa entre os egípcios por conseguir ser sedutora sem ser
vulgar, e esse tipo de citação pode ser encontrada em diversas fontes. Até Edward Said (famoso historiador palestino conhecido por sua obra "Orientalismo") é mencionado por ter dito certa vez que ela era
capaz de ser sedutora sem se esforçar, sem ser vulgar, que ela era capaz de
dominar as autoridades sem perder a compostura, além da forma franca e direta
que era capaz de contar suas experiências fracassadas com os homens (também, com 14 casamentos, haja história!).
De certa forma, pode-se dizer que Tahia incorporava diversos traços que os egípcios gostam de
ver e com as quais eles se identificam. Ela tinha uma personalidade muito forte, não se deixando
dobrar com facilidade, mas sem deixar de ser simpática e encantadora.
Como exemplo disso, existe uma citação dela que diz "Quando eu dançava, ninguém falava,
e nenhum garçom servia nada. Eu simplesmente não permitia. Certa vez um homem
estava falando durante o meu show em Beirute, e eu bati nele com minha bengala
até ele se calar! Hoje em dia as casas noturnas são muito barulhentas, e as
bailarinas vulgares demais. Eu não aprovo."
Apesar do relacionamento conturbado com seus familiares e com os fãs
egípcios por ela ser bailarina, Tahia foi uma das artistas mais amadas do Egito. Ela
se aposentou da dança 1963, continuando na carreira de atriz. Quando ficou mais
velha, fez a peregrinação a Meca e passou a usar véu, o que a deu ainda mais
credibilidade no Egito. Os egípcios adoram histórias de bailarinas que se tornam mais religiosas e param de dançar.
Após passar seus últimos 13 anos de vida dedicando-se ao Islã, ela
faleceu em 1999, aos 80 anos, por conta de um ataque cardíaco, e o seu funeral foi um grande acontecimento público, com a procissão
sendo liderada pelo ministro da cultura da época, Farouk Hosni. E como não poderia deixar de colocar aqui, Tahia Carioca para o nosso deleite!